Perversidade social: o sombrio espelho que nos revela

A etimologia da palavra perversidade vem do latim pervertere que corresponde o ato ou efeito de inverter, tornar-se perverso, corromper, desmoralizar, depravar. Nos dicionários o sinônimo de perversão é de alguém malvado, aquele que tem má índole, quem tem tendência a praticar crueldades. Ninguém se identifica como uma pessoa má, cruel, corrupta, mas muitos somos fascinados ou ainda admiramos personagens com essas qualidades.

Como exemplo, Darth Vader é um dos personagens mais marcantes da saga Star Wars: sua presença é impactante! Ao olharmos em retrospectiva, Anakin Skywalker foi um Jedi habilidoso, inteligente, afetuoso, companheiro e amado por seus amigos. Por uma série de fatores, o lado escuro da Força (raiva, medo, ódio, frustração, inveja) se apoderou dele e o tornou Darth Vader. Em termos junguianos, a sombra ficou unilateralizada na consciência de Anakin e ele ficou identificado com ela. Apesar disso, é um dos personagens mais marcantes da franquia e adorado pelos fãs.

O meme da Nazaré Tedesco é super popular na internet. Mesmo sendo um personagem malvado que sequestrou um bebê, matou pessoas ora empurrando da escada ora à tesourada. E mesmo assim, Nazaré foi imortalizada na rede.

Como uma provocação, ao nos depararmos com alguém ou algum personagem perverso que admiramos, devemos nos perguntar: quais aspectos meus estão projetados nesta pessoa?

Para mantermos a persona adequada socialmente, reprimimos os aspectos sombrios de nossa personalidade. Sendo assim, inconscientemente projetamos nos perversos essa parte não reconhecida (mas muito viva) em nós. Se outras pessoas carregarem para nós a projeção do nosso próprio lado obscuro que odiamos, reagiremos a elas de modo condizente. Passaremos então a odiá-las, temê-las ou admirá-las e as veremos a partir de nossa sombra menosprezada. Quando a sombra é projetada não percebemos as sinistras intenções nela existentes.

A sombra pessoal é única a cada um de nós; a sombra coletiva é a tendência mais sombria da cultura, uma espécie de “somatória das sombras” atemporais dos indivíduos sociais. Cada um de nós carrega uma sombra pessoal e cada um de nós participa de uma sombra coletiva e, à medida que os indivíduos inseridos num grupo ou nação tornam-se idênticos à consciência cultural, também eles pertencerão a sombra coletiva.

Não é de hoje que ao abrir os sites de notícias, ao assistir os telejornais somos inundados por notícias mórbidas: assassinatos, mortes, violências, roubos, assaltos, agressões de toda espécie são tão constantes que quase banalizamos esses fatos.

Com a instalação da pandemia e a má gestão pública em nosso país, infelizmente tornou-se natural desassociarmos os números de mortes com as vidas perdidas. Enquanto no início da pandemia choravam-se cerca de 700 mortos na Itália, hoje com 3.000 mortes diárias, em média, em nosso país, vemos bares lotados e ausência de medidas de prevenção de contágio, outros, ainda, incentivaram a propagação da doença como meio de se acabar logo com essa pandemia.

A fome, o desemprego, a miséria, as doenças, o ódio, a descriminação estão tão concretos que quase os “pegamos no ar”. As mídias sociais evidenciam a quantidade de ofensas, xingamentos e cancelamentos, numa espécie de apedrejamento virtual. O ódio, o preconceito, a falta de empatia parecem ter deixado de fazer parte dos aspectos sombrios e passaram a ser o “novo normal” da convivência, principalmente nas plataformas virtuais. A distância e o semianonimato facilitam com que a educação, o diálogo e a civilidade passem longe das conversas.

Temos a sensação de que a maldade está em alta e predominante em nossa sociedade. Pessoas “de bem” pregam a morte, o linchamento e não tem vergonha de espalhar mentiras em nome de seus objetivos, alegando que, com isso, estão fazendo algo de bom. Quem nunca olhou a seção de comentários das notícias e se perguntou o porquê de ter feito isso.

Como dito acima, projetamos nesses personagens (tanto fictícios quanto da vida real) nossa própria maldade e nossa própria perversidade. Os exemplos que trouxemos das mídias sociais e da banalização da vida são para mostrar que todos temos em nós um malvado ou um perverso. O cidadão comum que humilha outro na internet, ou que deseja a morte de uma pessoa que seja de alguma forma diferente do que ele acredita e revela uma dura verdade que poucos ousam encarar: o monstro ali fora, também vive em mim. Todos carregamos um pouco dessa maldade que hoje está aí para quem quiser e para quem não quiser ver.

Muito se discute sobre a ontologia da maldade. Seria ela a falta da bondade ou a “privatio boni”, ou teria ela sua própria substância? Para a psicologia analítica tudo o que existe está ou passou pela psique, dessa forma a maldade existe, porque ela existe no humano, como a contraposição da bondade.

Olhar para nosso malvado interior é o começo de um trabalho analítico. Reconhecer e identificar a própria sombra, com o próprio ódio, os desejos macabros, os preconceitos, é um dos primeiros e mais importantes passos da tomada de consciência. Não é uma jornada fácil, pois tememos e nos envergonhamos deste lado imperfeito e obscuro que habita em nós.

Mas, ao identificarmos os monstros que habitam em nós e refletir do que são capazes, faz com que reconheçamos a sombra.

E não podemos perder a perspectiva que a tarefa da individuação é a totalidade e não a bondade, a pureza ou a felicidade. E a totalidade inclui a descida ao nosso Hades.

O pavor e a resistência que todo ser humano sente quando precisa penetrar profundamente em si mesmo é, no fundo, o medo da jornada em direção ao Hades e reconhecer em si seu lado mais obscuro e sombrio.

Mergulhar em nossas profundezas e confrontar o perverso que existe em nós, poderá ser um processo de encontro da alma. A dolorosa tarefa de conscientização da sombra faz com que hidratemos nossa alma ressequida. Traz consciência de nossa limitação, humanidade e falibilidade.

Morremos simbolicamente em nossa pretensa perfeição, alquebramos a identificação com a frágil persona e nos aproximamos do que em nós é mais genuíno.

Nossa metade obscura também nos ajuda a sermos menos causais e adquirimos mais reflexões teleológicas da vida.

Ao assumir meu “eu sombrio”, me torno “nós”. Em nossa individualidade nos tornamos plurais e conscientes da diversidade em nossa coletividade, e o diferente deixa de ser ameaça.

Individuar-se não significa sermos perfeitos, mas indivíduos completos com sua luz e escuridão, aumentando assim as possibilidades para que a alma seja preenchida por Eros.

Individuar-se não nos exclui do mundo, mas aproxima o mundo de nós.


Daniela Euzebio – Membro analista em formação pelo IJEP– SP

Mauro Soave Jr. – Membro analista em formação pelo IJEP – DF

Referências

GUGGENBÜHL-CRAIG, Adolf – Eros de muletas – reflexões sobre amoralidade e psicopatia. Curitiba – Corsária, 1998

JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes, 1986 (Obras completas de C.G.Jung, v. 8/2).

SANFORD, John A. MAL – O Lado Sombrio da Realidade. São Paulo: Paulinas, 1988