O Nascimento

Por Carlos São Paulo

Em um dia, de sol ou de chuva, eu estava lutando no mundo invisível, habitado por aqueles que podem vir a nascer ou não. Sem compreender esse lugar onde moram os mistérios, fui sendo levado a construir a minha estrada cheia de pedras, seduções e curvas perigosas. À medida que caminhava e mudava de nível, escrevia no “livro dos arrependimentos”. Quando adquiri a compreensão de que as decisões são tomadas pelos muitos “eus” que nos habitam, atinei que considerar atitudes erradas do passado é o resultado de uma evolução da consciência, por isso queimei aquele livro.

Meus filhos viveram o resultado das decisões que seus pais tomaram, porém do alto da colina de um melhor entendimento da vida foi que notei o quanto as minhas atitudes envolvidas poderiam ter sido feitas de outra maneira. Eles também tiveram que passar pelo corredor estreito do amadurecimento e, assim, ser desafiados em suas experiências de vida. Por que razão teve que ser da forma que foi? Não ficou muito claro. Quem sabe, talvez estivessem no jogo de dados de Deus, ou no que estava escrito no destino que os humanos imaginam, mesmo sem saber o que é.

Percorri um longo caminho sem me dar conta do quanto andei. Saí de um mundo inocente na infância, um momento da vida em que passivamente sofremos os resultados desse jogo para chegar aonde estamos. A imaginação nos ajuda, trazendo com ela as nossas fantasias, como nos contos de fadas. Nasci num momento histórico-cultural em que a minha vinda ao mundo desafiava todas as proibições dadas às mulheres, como aquela da qual minha mãe veio a ser vítima. Escutava suas palavras ao dizer: “Queria ser um homem, nem que fosse de uma perna só”. Não era um verdadeiro desejo, mas uma fantasia que acalentava sair do sofrimento e da opressão dos homens sobre as mulheres, da lei da selva, em que o dinheiro (phallus) regia, de forma soberana.

Daquele lugar invisível, fui chamado para nascer. Chegou o momento para a minha mãe, como mulher, de pagar muito caro pelo seu “erro” de engravidar fora dos rituais celebrados como o “certos” para evitar o “inferno”. O “inferno” que ela viveria em vida, por sua própria família, que a perseguia.

Quando eu ainda estava no mundo dos que não existiam, vivia a dualidade: óvulo e espermatozoide à espera de se unirem. Não poderia ser outro óvulo, e sim aquele, daquela época e daquele momento, que precisava receber de forma invasiva, acolhendo o único espermatozoide que poderia me tirar daquele mundo dos não nascidos. Precisava nascer de um erro. As coisas “certas” não permitiriam, uma vez que seria necessário o pecado para uma nova vida surgir. Nasci desse deslize. Podia não ser eu e nunca saberia do meu eu que viria a existir, como todos os não nascidos, já que o véu opaco dos mistérios não me permitiria nenhuma visão sobre isso.

Para existir, Deus precisou criar o homem. Para existir, o átomo precisou se unir e dar forma a substâncias que fariam a vida humana com consciência descobrir que ele, o átomo, existe. Essa é apenas uma imaginação que eu precisava expor, não como verdade, já que “verdade” é só um vocábulo cuja propriedade deve estar conforme os fatos ou o que achamos ser realidade, e não a tradução do que chamamos de “enigma”.

O corpo foi mudando, não percebia, porém os registros da minha imagem insistiam em me mostrar como eu era. Amigos, irmãos, minha mãe, parentes e conhecidos, ou artistas do meu tempo, foram desfilando no corredor do desaparecimento e se perpetuando na última imagem que a minha mente registrou. Agora sentimos, “vocês passaram”. Falamos de vocês quando sentimos falta, como fragmentos da história da minha vida, em que me lembro de momentos registrados e costurados na memória com outros pedaços, ou qualquer outro registro que tenha sido cosido com a linha dos afetos.

Meus esforços de autodesenvolvimento associados aos meus trabalhos introspectivos serviram para limpar um pouco as relíquias do passado que ainda atuavam no presente. Tais esforços não eram para encontrar a minha verdadeira realidade, pois esta fica em outro lugar. Como saber de uma experiência que foge à nossa compreensão, a exemplo da ideia de espaço e tempo, que é imaginária, visto que se trata de uma criação humana em que nos adaptamos ao meio em que vivemos, ou que pensamos viver? Por mais que seja uma convenção e ilusória, no dia do meu aniversário, conto que já consumi mais hum ano do total que o meu destino irá permitir.

Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@carlossaopaulo