Mito de Sísifo – uma compreensão fenomenológica introdutória na abordagem junguiana

Por Ermelinda Ganem Fernandes

O estudo comparativo das mitologias do mundo nos compele a ver a história cultural da humanidade como uma unidade; pois achamos que temas como roubo do fogo, o dilúvio, a terra dos mortos, o nascido de uma virgem e o herói ressuscitado estão presentes do mundo todo – aparecem em toda parte sob novas combinações e se repetem como os elementos de um caleidoscópio. (…) E, embora muitos que se curvam de olhos fechados nos santuários de sua própria tradição esmiucem racionalmente e desqualifiquem os sacramentos de outros, uma comparação honesta revela imediatamente que todos foram criados de um único fundo de motivos mitológicos – selecionados, organizados, interpretados e ritualizados de modo diferente, de acordo com as necessidades locais, mas venerados por todos os povos da terra. (Campbell).

Introdução – Conhece-te a ti mesmo

Vamos convidá-lo para uma viagem no tempo. Estamos no século 2 a.C., na cidade de Delfos, importante centro religioso da Grécia antiga, no templo dedicado ao deus Apolo, e em cujos subterrâneos funcionava um famoso oráculo. Na mitologia, o local pertencia originariamente a Gaia (divindade que representa a Terra) e era guardado por sua filha, a serpente Píton. O deus Apolo, associado ao dom da profecia, teria assumido o controle do lugar após matar a serpente, que caiu numa fenda do solo e teria entrado em decomposição, passando a emitir vapores intoxicantes. Os gregos acreditavam que quando uma sacerdotisa – uma mulher de vida irrepreensível escolhida entre as camponesas – inalava tais gases, ela tinha seu espírito possuído por Apolo, que fazia as profecias por meio dela.

Ao entrarmos no Oráculo de Delfos vemos uma inscrição: “conhece-te a ti mesmo”, palavras que se tornaram uma espécie de referência na filosofia socrática para a busca do conhecimento, como o ponto de partida para uma vida equilibrada e, por consequência, mais autêntica e feliz.

Para Sallis (2003) as perguntas existenciais: quem sou eu e o que faço aqui? De onde venho? Para onde vou? Eram as perguntas que todos faziam no Oráculo de Delfos para a Pítia. E, até hoje, ainda buscamos respostas para essas perguntas. “Sentimos que há algo maior, espiritual, que habita em nós, e queremos encontrar um caminho para esse mistério que culminará com nossa morte física, mas não espiritual”(SALIS, 2003, p.18).

Dessa forma, conhecer a si mesmo envolve um questionamento sobre a nossa própria existência e querer entendê-la, explicá-la, seria uma das alternativas para lidar com a angústia que surge desse mistério. Uma das alternativas é a criação de deuses pelo homem que o instigam a elevar-se e o castigam quando tenta alcançá-los, mas jamais se submete. Dessa forma surgem mitos. Eles dão sentido e coerência necessários ao funcionamento organizado do indivíduo, assim como do grupo humano. Através do mito, o homem se posiciona diante do universo, definindo uma identidade que lhe possibilita sobreviver e arriscar-se na experimentação da vida.

A criação de heróis e deuses, presentes em diversas épocas e culturas, traduz uma tendência do homem de mitificar o mundo. Para os gregos antigos, os mitos não eram histórias de entretenimento e nem curiosidades; diziam algo a respeito do mundo, do homem e seus deuses, e se constituíram um verdadeiro reservatório de conhecimentos de significado imorredouro.

Os mitos e a psicologia analítica

Uma das maiores contribuições de Jung para a psicologia foi a descoberta dos arquétipos, que correspondem a padrões inatos de comportamento, herdados, comuns à humanidade, situados em uma camada psíquica denominada de inconsciente coletivo. No entanto, os arquétipos são formas sem conteúdo, correspondendo a possibilidades latentes de manifestação, que podem ser ativadas durante a vida (JUNG, 2000).

A palavra arquétipo deriva do grego arché, significando substância primordial, e typós, cujo significado é impressão, marca. Para Jacobi (1986) os arquétipos correspondem a padrões de comportamento que conferem ao ser humano a sua índole específica.

Jung (2000) esclarece que o arquétipo é uma faculdade pré-formadora do psíquico, sempre a mesma, para todas as pessoas, independente de raça, particular ao homo sapiens, por ter a estrutura cerebral sempre idêntica. No entanto, o inconsciente fornece, por assim dizer, só a forma arquetípica, a predisposição para formar imagens, que é em si mesma vazia e, por isso, inimaginável. Da parte do consciente, essa forma logo está sendo preenchida por material imaginado, aparentado e semelhante, tornado perceptível (JACOBI, 1986). Quando o arquétipo é “vestido” temos as imagens arquetípicas.

Figura 1– Arquétipos e imagens arquetípicas (símbolos). Fonte: a autora.

A figura acima demonstra a diferença conceitual entre arquétipo e imagem arquetípica. O arquétipo em si (latente, invisível), está representado pelo oceano, e a imagem arquetípica (atualizada, perceptível à consciência) pela mão, que emerge do oceano inconsciente e arquetípico, estendendo-se à terra, símbolo da consciência. As imagens arquetípicas correspondem à visibilidade manifesta do arquétipo. Os símbolos, dessa forma, podem ser considerados como os significantes dos arquétipos. Através deles, os arquétipos podem ser percebidos pela consciência.

Para entendermos melhor o conceito de símbolo para Jung, recorremos à etimologia da palavra em alemão: Sinnbild, que é traduzido como “imagem do sentido”. O termo em alemão traduz as duas esferas presentes no conceito junguiano de símbolo. A primeira esfera, o sentido (sinn), como o elemento integrante do consciente reconhecedor e formativo e a segunda esfera, a imagem (bild), como matéria prima substancial do criador seio primário do inconsciente coletivo que, pela união com o primeiro, recebe o seu significado e forma (JACOBI, 1986).

Para Hillman (1981), a linguagem primária dos arquétipos é a linguagem metafórica dos mitos.   Eles são os padrões fundamentais da existência humana. Para estudar a natureza humana no seu nível mais básico, é necessário voltar-se para a cultura (mitologia, religião, arte, arquitetura, o épico, o drama, o ritual) onde esses padrões são evidentes. Para Jung, os mitos são redes de símbolos gerados pelo diálogo entre o ego e as figuras do inconsciente. O mito é um início de racionalizacão da experiêcia simbólica na forma de narrativa, exprimindo um esquema ou um conjunto deles, na qual os símbolos traduzem-se em palavras e os arquétipos em idéias, conceitos, esquemas de pensamento e visões racionais do mundo.

O conhecimento mais aprofundado das figuras mitológicas permite às pessoas um conhecimento mais profundo de suas personalidades. Os personagens míticos representam aspectos da nossa personalidade, que podem ou não estar ativados em determinado momento, a depender das circunstâncias de vida e predisposição individual. Quando ativos, realizam uma função estruturante na personalidade, “modelando” a mesma (BOLEN, 1990).

Os mitos expressam, de um modo altamente poético, o drama do homem como um ser que aspira à beleza e ao bem, ao mesmo tempo em que se depara com sua miséria e com suas necessidades.

É pela capacidade de simbolização mítica , que o ser humano se constrói e reconstrói com a natureza, dialogando com a mesma e “animando o mundo”. Para Jung a metáfora é “o símbolo que cura” (e os mitos são poderosas metáforas). De acordo com ele a metáfora afeta a pessoa em 03 níveis: mental, onde se interpreta o significado; emocional, coligado aos sentimentos incorporados à metáfora e imaginário, onde reside o verdadeiro poder de transformação da metáfora. A atuação simultânea da metáfora nesses 03 níveis permite-lhe estabelecer uma profunda relação com a psique (WOODMAN, 2003).

A metáfora-símbolo-mito nos insere no domínio do virtual, “ver como”, nas palavras de Gauthier (2004, p. 132), ou “psicologizar ou enxergar através”, segundo Hillman (1995, p. 43), descrevendo, portanto, um movimento que permite ver além, enxergar além do factual, e impossibilitando o trabalho reiterado de literalização dos sentidos na forma daquilo que conhecemos. A força ou especificidade da metáfora reside na sua relação com o sentido, o que provoca seu descolamento de formulações preconcebidas e forma, de maneira virtualmente inesgotável, novas ligações.

Jung e o “Conhece-te a ti mesmo”.

Para Hillman (2010), Jung nos trouxe um MÉTODO pelo qual cada um de nós pode responder à pergunta central do oráculo de Delfos “Conhece-te a ti mesmo”. Esse método psicológico de Jung (Arte) “significa tornar-se familiar, abrir-se e ouvir, isto é, conhecer e discernir, daimones Temos de nos relacionar com pessoas cuja autonomia pode alterar radicalmente, até dominar, nossos pensamentos e sentimentos, sem comandá-las nem conceder-lhes total influência….elas e nós somos tecidos juntos, como em um mythos, uma trama, até que a morte nos separe ” (HILLMAN, 2010, p. 90).

Os daimones, que os gregos consideravam seres intermediários entres os deuses e os homens são utilizados por Hillman para falar das nossas subpersonalidades (complexos personificados), figuras do nosso inconsciente, imagens arquetípicas. As subpersonalidades, como imagens arquetípicas, fazem analogia com as figuras mitológicas (deuses). São os nossos complexos personificados, roupagens arquetípicas das nossas dinâmicas existenciais, imagens plásticas subjetivas e individuais, que dão forma e vestem os arquétipos coletivos e impessoais de uma forma pessoal. Essas imagens carregam forte tonalidade emocional face à sua base arquetípica e inconsciente.

Jung em várias passagens de sua obra comparou os arquétipos, a divindades e daimones. Em 1930, por exemplo, anotou: “Em si mesmo, um arquétipo não é bom nem mau. É moralmente neutro, como os deuses da antiguidade, e se torna bom ou mau apenas pelo contato com a mente consciente ou ainda pela mistura de ambos” (JUNG, 1984, p.104). Em outro momento, acrescentou: “[…] os arquétipos, enquanto não apresentam apenas relacões funcionais, revelam-se como daimones, como agentes pessoais” (JUNG, 1995, p.248).

Os daimones ou deuses são, portanto, imagens arquetípicas que formam os nossos mundos “psicologicamente reais”, imaginais, formando uma “pluralidade de perspectivas que determina nossa subjetividade, os muitos olhares que enxergam através dos nossos….Eles formam o logos das pessoas imaginais que sustentam todas as nossas idéias e feitos…” (HILLMAN, 2010, p. 122).

A psicologia, dessa forma, torna-se o estudo da alma (etimologicamente falando como logos =estudo e psyche=alma). O fazer alma proposto por Hillman assemelha-se a um artesanato onde de forma complexa (a palavra complexus significa tecer junto) vamos dialogando, tecendo junto com os nossos daimones. Esse fazer mítico que implica em honrar os deuses que nos compõem, implica em “FAZER AMOR COM AS IMAGENS”, provocar o casamento entre Eros e Psyche. Essa é a proposta da psicologia arquetípica.

Uma imagem é contexto, disposição, cenário, e, quando considerada nessa luz, uma imagem não pode ser algo somente na frente dos seus olhos, ou diante do olho de sua mente. É algo em que você entra e pelo qual você é abraçado. As imagens nos prendem (HILLMAN, 1978).

Além de “ficarmos com as imagens”, nos deixando conduzir por elas, como propõe a psicologia arquetípica, a hermenêutica junguiana clássica trabalha com os mitos através da “amplificação”, que permite alcançar, por inferência, estruturas arquetípicas do inconsciente. Esse método consiste em uma técnica que envolve o uso de analogias para enriquecer o sentido de uma imagem. Buscamos tecer relações analógicas com paralelos míticos, históricos e culturais de forma a esclarecer, tornar mais amplo e, por assim dizer, aumentar o volume do material factual, emocional e de fantasia, que pode ser obscuro, tênue e difícil de tratar, visando realizar um estudo comparativo. Para Von Franz (1990) amplificar significa alargar um tema através da junção de numerosas versões análogas.

Na amplificação, lança-se mão de uma linguagem mais familiar ao inconsciente, a linguagem circular e poética do mito e do símbolo. “Pelo pensamento-fantasia se faz a ligação do pensamento dirigido com as camadas mais antigas do espírito humano, que há muito se encontram, abaixo do limiar da consciência […]” (JUNG, 1999). Na amplificação, através de formas de expressão

variadas (como, por exemplo, pintura, desenho ou modelagem), o paciente cria uma cadeia de fantasias associadas à imagem da qual partiu.

Um exemplo de trabalho com os mitos – o mito de Sisifo

Vamos agora utilizar o mito grego de Sísifo para exercitarmos a leitura junguiana (arquetípica e simbólica), buscando nos aprofundar no conhecimento dessa hermenêutica (amplificação e abordagem arquetípica) como ferramenta simbólica. Quem nos conta o mito é o poeta grego Homero no livro clássico a Odisséia:

“Sísifo, filho de Éolo e Enarete, fundou a cidade de Corinto… Sua astúcia e habilidade eram notáveis…Certo dia, ele casualmente viu Zeus raptando Égina, a ninfa do rio e filha do deus-rio Ásopo e Metope. Zeus levou-a para a ilha Enoma e ali a desonrou. Ásopo iniciou a perseguição e pediu informações a Sísifo; este prometeu dizer tudo o que sabia caso recebesse em troca uma fonte de água fresca na Acrópole de Corinto, pedido esse prontamente atendido por Ásopo (a fonte Pirene).

Zeus ficou furioso com a revelação de Sísifo e quis castigá-lo; enviou então Tânato (a morte), a fim de levá-lo para a casa de Hades. Sísifo, o astuto, ludibriou Tânato de uma maneira qualquer, amarrou-o e atirou-o em um calabouço , razão pela qual os mortais não mais morreram.

Os deuses, inseguros com este fenômeno contrário à natureza, enviaram Ares para libertar Tânato, que saiu pela segunda vez à procura de Sísifo. Contando com isso, Sísifo havia dado a sua esposa, Mérope, instruções exatas: ela deixou o corpo dele insepulto e não ofereceu ao defunto nenhum dos sacrifícios habituais. Desse modo, Sísifo enganou Hades: pois o deus ficou tão zangado com a negligência de Mérope que deixou Sísifo retornar ao mundo dos vivos para castigar Mérope e providenciar o sepultamento do cadáver. Voltando à cidade de Corinto, contudo, Sísifo não fez nada disso; ao contrário, defrutou de sua vida até a velhice avançada, rindo dos deuses do Inferno.

Talvez por causa de seu ateísmo, como também por ter traído Zeus, a sua sombra – supõe-se – foi atormentada após a morte, no Tártaro.

CASTIGO DE SÍSIFO: Os deuses tinham condenado Sísifo a empurrar sem descanso um rochedo até ao cume de uma montanha, de onde a pedra caía de novo, em consequência do seu peso.

Também vi Sísifo extenuando-se e sofrendo; empurrava um bloco imenso com ambas as mãos. Na verdade, ele a arrastava até o cume, sustentando-a com os pés e as mãos; mas quando estava a ponto de, finalmente, atingir o alto do morro, o peso excessivo o impelia para baixo. Novamente, então, a pedra impiedosa rolava para o vale. Entretanto, ele reiniciava o trabalho e empurrava-a, a ponto de ficar com o corpo banhado de suor; ao redor de sua cabeça, porém, pairava uma nuvem de poeira.

O mito de Sísifo gira em torno do símbolo da pedra, esta entendida como “Algo que nos oferece resistência, um obstáculo, um peso”. Para Kast (1997) “O mito de Sísifo é, portanto, um mito associado ao homem que trabalha, talvez realmente um mito do trabalho”. Se entrarmos em contato com a subpersonalidade de Sísifo em nossa psique podemos nos perguntar: Qual é o papel que o Mito de Sísifo desempenha em nossa vida, ou seja, qual é a pedra que empurramos ladeira acima – isto é, qual é o fardo que se opõe e resiste a nós, no trabalho?” (ZWEIG; WOLF, 2000).

No início do mito, vendo-o como um modelo para os homens, Sísifo estaria atraído pela eterna mudança, representada de maneira especialmente clara pela água corrente. Ele está arrebatado pela mudança criativa (KAST, 1997). No entanto o titã ludibria a morte, ele não aceita a morte, o término das coisas.

O mito nos diz bem claramente: por ter ludibriado a morte duas vezes, a sombra de Sísifo tem de rolar a pedra no Inferno e ele não pode parar de rolar essa pedra, mesmo tendo de largá-la sempre.

Precisamos saber com consciência de que a morte convive conosco, o que torna a vida preciosa.

Sísifo quer evitar o inevitável. A vida é acompanhada pela morte e esta é inevitável. Sísifo representa um ego petulante que acha que é um Deus e pode evitar o inevitável. Esse ego tem de se despojar da sua petulância e arrogância.

Em que situações da vida nos comportamos como Sísifo, nos recusando a admitir nossas perdas? Em que situações precisamos aceitar a morte, admitindo um prejuízo, uma despedida?

O castigo de Sisifo envolve as sequintes questões:

  • PESO
  • FRACASSO
  • ESFORÇO
  • TER DE LARGAR   
  • REPETIÇÃO

Para Kast (1997), o trabalho também pode se tornar um trabalho de Sísifo, principalmente quando ele é um peso para nós, seja porque exigimos demais, seja porque nos excedemos… No sentido de uma enorme exigência de nós mesmos.

Eu diria até que podemos extrapolar o trabalho de Sisifo para outras esferas da nossa vida (família, relacionamentos, etc).

Um pouco antes de alcançar o objetivo, ocorre o fracasso – “a pedra cai”. A pedra nunca chegará ao objetivo, porém Sisifo empreende enorme esforço e nunca desiste. O mito de Sísifo não é o mito de um homem fugindo; é um mito de um homem que resiste e não desiste, dando tudo de si (KAST, 1997).

Largar, abandonar, desistir, “desapegar-se”, “deixar a pedra descer”, é o que Sísifo não consegue. Ele tenta subir a pedra montanha acima em um esforço heróico. E mais uma vez não larga voluntariamente; só larga quando o peso excessivo da pedra o vence.

Se nunca admitirmos a perda, teremos então de sempre rolar a pedra montanha acima, e a nossa pedra também será superpesada e rolará de volta para o vale, desvencilhando-se de nossos esforços.

“O ‘poder largar’ exige mais coragem do que o ‘querer segurar’. Por sua vez, não sabemos como a vida se modifica quando largamos. O mito nos diz apenas o que acontece quando nos apegamos além do tempo. O ato de largar poderia resultar, então, na ocorrência da mudança” (KAST, 1997)

Muitas pessoas vivem o trabalho como a tarefa de Sísifo: algo monótono e repetitivo, um esforço não apreciado que não conduz a lugar nenhum. Vivem um “trabalho sem alma”. Nas pessoas que se sentem vivendo o mito de Sísifo existe a idéia de um destino sem compaixão, de um esforço sem Eros. É somente através de Eros (amor) que podemos vivenciar um excedente de vida no contato com a morte.

Como já vimos na primeira parte do texto, precisamos entrar em contato com os símbolos para podermos viver as subpersonalidade míticas da nossa psique. E a pedra de Sisifo também pode ser vista de outros pontos de vista. Os símbolos são multifacetados e apontam em diferentes direções.

A pedra, também, pode significar firmeza e imutabilidade, propriedades relacionadas ao Divino. A pedra parece ser um símbolo antiquíssimo do eterno, do duradouro que há no homem do qual ele tira a força de que necessita para viver. As pedras que diversos povos empilham nos túmulos tem o mesmo significado: simbolizam aquilo que sobrevive à morte nos seres humanos” (VON FRANZ, 1992).

O símbolo da pedra sagrada – Vendo a pedra sob essa ótica, como algo sagrado, nos leva a um outro olhar para o mito de Sisifo, pois carregar “o sagrado” implica em carregar o deus que nos está destinado e, assumir a tarefa de vida específica, personificada por esse deus. O trabalho de Sísifo, nesse caso, pode ser visto como um trabalho com alma. Aqui o êxito está ligado ao esforço de carregar a pedra, mesmo sem ter uma finalidade aparente (KAST, 1997).

Para Kast (1997), nesse caso, Sísifo não carrega simplesmente um peso, mas tem uma tarefa que o liga ao divino. Nesta interpretação, o sentido, porém, não reside em terminar a tarefa, mas nas experiências tidas no caminho tantas vezes percorrido com essa “pedra”. O foco está no processo, no caminhar. As experiências de Sísifo são de força e de energia, porque ele ressignificou e deu sentido ao caminho.

Para a autora, devemos entender essa pedra – considerando essa rocha e esse ato de carregar a pedra como uma situação universalmente humana – como um mero peso inerte que só importuna, só incomoda, que desafia todas as nossas forças de maneira completamente insensata? Ou devemos ver nas pedras que sustentamos – tarefas de vida muitas vezes desagradáveis – o sentido nelas oculto e, às vezes até, quem sabe, inventar um sentido?.

A repetição criativa – A repetição sisifiana pode ser vista, também, de um ponto de vista positivo, como um aspecto da atividade criativa. São os famosos “retoques” dados pelo artista quando está finalizando uma obra de arte. “A pequena mudança possível pode tomar o lugar do grande projeto impossível, quando se aceita a repetição, ou seja, na repetição fixa-se também a vida, e não somos mais continuamente confrontados com situações novas e indiscerníveis” (KAST, 1997).

Conclusão – Como transformar a pedra de Sisifo na pedra filosofal? (um caminho para a ressignificação do mito).

Já vimos que a pedra pesada de Sísifo pode, a depender do sentido que damos a ela, se tornar um presente ou um castigo nas nossas vidas. Então como podemos transformar a pesada pedra de Sísifo na leve pedra filosofal, a imagem alquímica do deus na matéria, transformando chumbo em ouro, nosso trabalho diário na Grande Obra?  (ZWEIG; WOLF, 2000).

Os alquimistas buscavam, através de uma sucessão de experiências em laboratório, a criação de ouro a partir de metais inferiores. Para criar o ouro, a maioria dos alquimistas acreditava que antes era necessário encontrar o elixir da longa vida ou pedra filosofal, pois só ela teria o poder de transmutar ou criar (RAFF, 2002).A ‘pedra enviada por Deus’ era o ponto de partida e o alvo do opus alquímico, a pedra que pode transformar todo metal em ouro e que, segundo alguns autores, está oculta no corpo humano, devendo ser extraída dele. É o mistério de Deus na matéria, chegando a ser descrita como a ‘pedra que tem um espírito (pneuma)’ que deve ser extraído dela” (JUNG, 1990).

Para Von Franz (1992), não é casual o fato de os alquimistas terem escolhido como imagem de Deus o símbolo da pedra, porque esse símbolo acentua o princípio da matéria, porque ele pode ser encontrado em toda parte, é ‘barato’ e porque sua fabricação está ao alcance de todo homem.

A alquimia propõe-se a alcançar este ‘tesouro difícil de ser alcançado’ e a produzi-lo de forma visível na medida em que a Arte se exerce no laboratório. E esse laboratório é a nossa VIDA!!!.

Sigamos, com Jung (1990), o conselho de Ostanes, um alquimista do primeiro séc a.C: “Vai até as correntezas do Nilo e lá encontrarás uma pedra que tem espírito. Toma-a, divide-a e enfia tua mão dentro dela para extrair-lhe o coração, pois sua alma reside em seu coração’. Há um comentário intercalado que diz o seguinte: ‘Lá encontrarás aquela pedra que tem um espírito e que se relaciona com a expulsão do mercúrio’”.

Essa pedra “pneumática”, face à sua leveza, é um dos símbolos do Si-mesmo, centro ordenador e unificador da psique total (consciente e inconsciente), assim como o ego é o centro da personalidade consciente. O Si-mesmo constitue, p orconseguinte, a autoridade psíquica suprema, mantendo o ego submetido ao seu domínio. O Si-mesmo é descrito de forma mais simples como a divindade empírica interna, e equivale à imago Dei ” (EDINGER, 1992). A pedra filosofal seria, pois, um símbolo do deus interior que há no homem.

Relacionar-se com a pedra de Sísifo buscando transformá-la na pedra filosofal implica em um movimento de “aprender a largar” e deixar a pedra cair, buscando uma contínua reinvenção de novos trajetos para ela, caminhos que muitas vezes antes passavam despercebidos, ofuscados pelo objetivo máximo de “atingir as metas”. A melhor forma de agenciar as diferentes atividades é manter-se “aberto às possibilidades” que a vida nos envia, tendo fé no processo de individuação, estando atento às mensagens enviadas pelo inconsciente, honrando o Si-mesmo e dançando no eterno devir da vida:

“O sábio não tem idéia porque não privilegia nenhuma (nem, com isso, exclui nenhuma) e aborda o mundo sem projetar nele nenhuma visão preconcebida; ele não estreita nada, por conseguinte, com a intrusão de um ponto de vista pessoal, mas mantém sempre abertas todas as possibilidades” (JULLIEN, 2000, p. 21-22).

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Prof. Ermelinda Ganem Fernandes – Médica, analista junguiana, mestra e doutora em Engenharia e Gestão do Conhecimento da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina)

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Referências:

BOLEN, J. S. As deusas e a mulher – nova psicologia das mulheres. São Paulo: Paulus, 1990.

EDINGER, Edward F. Ego e arquétipo. São Paulo: Cultrix, 1992.

GAUTHIER, J. Z. A questão da metáfora, da referência e do sentido em pesquisas qualitativas: o aporte da sociopoética. Revista Brasileira de Educação. Campinas, v. 25, p. 127-142, 2004.

HILLMAN, J. Further Notes on Images. Spring Journal, 1978.

HILLMAN, J. Psicologia arquetípica: Um breve relato. São Paulo: Cultrix, 1995. HILLMAN, J. Ficções que curam. Psicoterapia e imaginação em Freud, Jung e Adler. São Paulo: Verus, 2010.

JACOBI, J. Complexo, arquétipo e símbolo. São Paulo: Cultrix, 1986.

JULLIEN, F. Primeira Parte. In: JULLIEN, F. Um sábio não tem ideias. São Paulo:

Editora Martins Fontes, 2000, p. 13-131.

JUNG, C. G. The Spirit in Man, Art and Literature. 3 ed. New York: Princeton University Press. London: ARK, 1984.

JUNG, C. G. Psicogênese das doenças mentais. Petrópolis: Vozes, 1990.

JUNG, C. G. Símbolos da transformacão. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1995.

JUNG, C. G. Fundamentos de Psicologia Analítica. 9a ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000. KAST, Verena. Sísifo. A Mesma Pedra-Um Novo caminho. Ed. Cultrix, 10ª Ed., 1997. SALIS, V. D. Mitologia viva: aprendendo com os deuses a arte de viver e amar. São Paulo: Nova Alexandria, 2003.

VON FRANZ, M. L. C.G.Jung, Seu Mito em Nossa Época. São Paulo: Cultrix, 1992. WOODMAN, M. A feminilidade consciente: entrevistas com Marion Woodman. São Paulo, Paulus, 2003.

ZWEIG, C. WOLF, S. O jogo das sombras: iluminando o lado escuro da alma. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.