Homem-máquina

Por João Rana Vieira Sarquis

Antes de morar em Manaus, eu trabalhava como clínico geral numa cidade do interior da Bahia, sentido sul do estado, chamada Itatim. Por lá, há um sol para cada habitante (em Juazeiro, há dois – piada velha, mas acertada) e imponentes formações rochosas que dão nome ao lugar. Em tupi-guarani, “ita” significa “pedra”, ao passo que o sufixo “tim” remete à “ponta”, “nariz” ou “agudo”; ou seja: nariz, ponta ou monte de pedra. Há um calor árido em Itatim, mantido por suas rochas e insinuado na vegetação de caatinga. Sempre brinquei (com fundo de verdade) que poderia se fritar um ovo na calçada, sem problemas, ao sol de meio-dia.

A produção agrícola local não se destaca tanto, mas o comércio é forte e atrai pessoas de vários cantos da região em busca de compra e venda. Como quase toda cidade pequena, muitos são empregados da prefeitura, de modo que uma boa parte não comerciante nem agricultora, ou que também não estuda, recorre a trabalhos informais. Para muitas famílias humildes uma fonte comum de renda para homens e mulheres consiste no trabalho em pedreiras. Josias, 18 anos, era um desses homens.

Adentrou o consultório apressado e algo ansioso, desejando um “check-up” (como quem leva um carro à oficina) e se queixando de dores pelo corpo, principalmente nas juntas dos joelhos, cotovelos e punhos, há cerca de 1 ano, quando começou a trabalhar. Estava bem arrumado e asseado para um jovem da sua idade, apesar de aparentar mais anos de vida: usava uma camisa de time, corrente prateada no pescoço, calça jeans e tênis esportivo. Não fumava, mas bebia regularmente nos finais de semana (“tomava uma”), porque afinal de contas, segundo ele, “ninguém é de ferro”. Prática de atividade física, quando questionada, foi atribuída ao próprio esforço laboral, negando esportes ou maiores momentos de lazer. Seu olhar era ávido, porém cansado, e suas mãos negras estavam bem calejadas pelo trabalho exaustivo e literal de “quebrar pedras” (contrastando com minha palma branca e lisa de “menino criado em apartamento”, habituado ao trabalho dito “intelectual”). Meu oxímetro, inclusive, tinha dificuldades em medir os parâmetros no seu dedo médio, devido ao espessamento de sua fáscia palmar.

Prontamente, Josias citou seu trabalho pesado como possível causa de suas queixas e associou uma coisa a outra, dizendo que muitos colegas sentiam algo semelhante. Nas pedreiras do tipo que ele labutava as pessoas recebem por quantidade de pedregulhos manejados, ou seja, quanto mais se trabalha, mais se ganha. Se não se trabalha, obviamente, não se ganha. Não há regime de CLT e a maioria nem sabe o que a sigla significa. Tudo isso se expondo à poeira, com o risco de silicose e outras pneumopatias, bem como a ruídos e traumas mecânicos das explosões para partir rochas maiores, debaixo de um calor perto dos 40ºC. Outro paciente meu, Bruno (colega de Josias), me disse que neste ofício podia se ver o “sangue e o suor latejando no braço”. Nunca me esquecerei dessas palavras. Vidas que sangram e evaporam, competindo com bombas e tratores, nesse misto brasileiro de “Mad Max” com Serra Pelada.

Lá perto do fim da consulta, Josias ensaia meio acanhado uma pergunta, segundo ele motivada por ações de terceiros, parceiros do trabalho. Disse que alguns homens de lá, visando prevenir e tratar dores nas juntas pelo duro labor, engoliam um pouco de graxa antes e após o trabalho, como um lubrificante, digamos assim. Me questiona se isso faz sentido, certamente porque fez ou pensou em fazer o mesmo. A primeira impressão, logo aparente e urgente, foi de espanto e absurdo, procurando educar e orientar os males orgânicos daquela conduta no mínimo “sem juízo”. “Vê se pode!? Meu Deus! Engolir graxa…”, pensava eu, indignado com a nula noção de “ciências naturais” daquelas  pessoas. Daí também veio um sentimento de revolta, desejo de justiça social, mais educação básica e emoções congruentes.  

A impressão mais ampla e profunda, no entanto, só se deu depois, após Josias sair do consultório. Porque afinal de contas, a princípio, frente a uma agenda cheia e com o tempo curto, não vi além e também me portei como ele e seus colegas: como uma máquina. Imagine então ter um ofício ou rotina demasiadamente desgastante, repetitiva, exploradora e entediante, que drena energia vital e embota a criatividade. Como você se sentiria? Ou melhor, o que sentiria? Aliás… sentiria?

Foi tão grande a identificação daqueles homens com sua labuta mecânica e visceral, sob uma fornalha infernal, que, somada à baixa instrução escolar, foram de encontro à sua humanidade para exercer ao máximo suas funções: um maquinário inumano manifestando-se nos corpos, lubrificando-se para render (e suportar) mais, isenta da mínima reflexão e amor próprio. Pois convenhamos que a ignorância existe, mas não é preciso ser Albert Einstein para saber que graxa não se come.

Foi com brilhantismo e humor que Chaplin, em 1936, denunciou a incipiente mecanização do homem nas sociedades industriais, através da obra-prima “Tempos Modernos”. Nele, vemos um Carlitos tão estressado e automatizado a ponto de sair perambulando descontroladamente, cheio de trejeitos, com movimentos estereotipados pela fábrica. Sua sobrecarga é tamanha que apresenta uma “crise de nervos”, um surto, pondo em cheque toda a ordem e o resultado da cadeia de produção (para o pesar do patrão). Mas quantos de nós, supostamente “orientados”, cada qual em sua medida e contexto, reativamente se desorganizam frente a um enquadramento massivo e paradoxal do neoliberalismo, em busca de um teórico sucesso e da felicidade vendida, presos a céu aberto ao consumismo e à influência da mídia? Não por acaso, explodem a cada dia os casos de síndrome de Burnout, entre outras condições eminentemente ansiosas e depressivas ligadas ao ambiente de trabalho.

Somos a todo tempo cobrados e vistos pelos papéis que exercemos coletivamente, notadamente tocante à profissão, e passamos a ignorar ou reprimir toda uma gama de outros aspectos que também nos constituem enquanto seres complexos e únicos. A rígida cisão que precisamos superar entre consciência e inconscienteanima (yin) e animus (yang), sombra e personamente e corponatureza e espírito, torna-se não apenas resistente, mas reforçada pelos padrões de metas e êxito que insinuam-se culturalmente no corpo social. O próprio modelo majoritário de ensino e avaliação é um exemplo disso: formamos competidores e não indivíduos, a fim de terem seus rostos e nomes estampados como vitrines pelas escolas e cursinhos pré-vestibulares, que poderão ter mais alunos e, assim, manter a roda girando.

Certa vez, meu irmão comentou algo emblemático nesse sentido, ao falar sobre uma colega que só fazia perguntas ao professor no final das aulas (e em particular). A colega, como ele, queria cursar Medicina. Intrigado com esse hábito, o professor de Filosofia questionou o “porquê” disso, já que ela demonstrava certa eloquência e pouca timidez, ao passo que a mesma respondeu preferir que as suas dúvidas e, logo, as respostas, não fossem do conhecimento de todos, já que dividia a sala com concorrentes. Para muitos jovens, o importante é “passar em Medicina” (ou Direito, Engenharia etc). “Como”, “por quê” e “para quê” “são outros 500” ou nem se passa por suas cabeças. O clipe de “Another Brick in the Wall”, lançado pelo Pink Floyd há 42 anos, mantém-se atual quando lembramos das crianças seguindo o fluxo da esteira rolante de uma fábrica, primeiro sendo padronizadas com seus assentos e rostos disformes, indiferenciados, para em seguida serem moídas  por um enorme processador industrial. Não há terreno fértil para as potencialidades individuais, inatas, se mecanizamos a existência ceifando parte de suas raízes, escondemos todas imperfeições da própria natureza e padronizamos os frutos. Não há florescer que surja (ou sobreviva) sem sérias sequelas diante dessas condições.

Reflexões dessa ordem tornam um pouco mais claro porque há tantos universitários acometidos por transtornos de humor e tentativas de suicídio, principalmente na área da Saúde, aonde se lida diretamente com o sofrimento humano. Além de todo o estresse psicossocial para se graduar, bem como os processos de contratransferência no contato com a dor alheia, uma análise mais próxima percebe que muitas dessas escolhas não foram feitas de modo consciente, com preparo e meditação, ou então foram forçadas. Some à equação o progressivo sumiço dos ritos de passagem em nossos tempos, como da idade jovem para a idade adulta. Ultimamente, o mais próximo disso é a própria entrada na faculdade, permeada por “trotes” humilhantes, após passar em provas conteudistas com uma gama de assuntos que não serão utilizados em sua vida, para estar em um curso que pode não ser o que você quer (mas o que seus pais queriam), onde todos voltam a competir. Para completar, a grade curricular das universidades não dá conta de estimular ou desenvolver a inteligência emocional que a vida e o mercado de trabalho de fato exigem: em sua maioria, entram jovens adultos (ou adolescentes) e saem fachadas de adultos portando diplomas. Qual o resultado mais provável dessa conta?

Muitos dizem que 18 anos é uma idade curta e infeliz para tomarmos decisões de cunho profissional, estando a maioria nessa faixa etária ainda imatura para tal responsabilidade. É antes disso, no entanto, que adolescentes de grupos tribais costumam ser iniciados por ritos de transição, assim que chegam a uma certa idade e/ou desenvolvimento. Geralmente, há alguma provação física e psicológica, às vezes com certo grau de flagelação corporal, mediada por um membro mais velho, que leva à superação de fragilidades e expressão de potencialidades daquele que integrará, no seu processo, fenômenos somáticos e psíquicos. Entra um menino, sai um homem, responsável por si mesmo e pelos seus semelhantes, conhecedor da natureza e de sua “alma livre”, “animal pessoal” ou daimon (vocação ou chamado interior). Entre os aborígenes australianos, um importante exemplo ritualístico é o “walkabout” (ou “andança”). Segundo WASSERMAN (2013) :

Na cultura aborígine, a caminhada australiana já foi o último rito de passagem. Os meninos aborígenes, ao chegarem à adolescência, embarcam em uma jornada de autodescoberta aventurando-se no deserto. Eles vivem da terra por até seis meses, passando por uma transição espiritual para a maturidade.

No lado de cá, somos levados a escolher o que iremos fazer (em termos de ofício) antes mesmo de pensar sobre quem somos, com o sério risco de igualarmos e reduzirmos as duas coisas. Justamente por isso, o desemprego, não apenas por implicações sociais, funcionais e financeiras, é um dos principais eventos da vida ligados à depressão e ao suicídio (FEDRI, 2020). Eu só sou o que eu faço? E o que eu penso, sinto, percebo, amo ou o que deixo de fazer? Isso também não é parte de mim?

No lado de lá, a simultaneidade imposta pelo rito entre desenvolvimento do corpo e fortalecimento psíquico permite alinhar as nuances objetivas e subjetivas que nos compõem: de fora pra dentro e de dentro pra fora. O tempo quantitativo e cronológico manifestado pelas alterações puberais, numa idade média, nivela-se em parte com o tempo qualitativo advindo do dinamismo interno, elaborado por meio do rito, numa produtiva (re)conciliação entre Cronos e Kairós (deus do tempo oportuno), propícia ao alinhamento do eixo ego-Self.

Mesmo havendo um preparo prévio aos ritos, não se trata aqui, todavia, de romantizar a imposição coletiva dos mesmos nas sociedades ditas “primitivas”, o que não deixa de ser uma realidade a partir da nossa ótica (já que priorizam a preservação do grupo), mas de compreender a estruturação psíquica que oferecem enquanto instrumento simbólico, algo que tanto carecemos.

Ironicamente, contrapondo-se à noção tribal de comunidade/grupo e à centralização estatal, se o neoliberalismo, principal doutrina econômica vigente, possui suas bases filosóficas em torno da defesa da liberdade individual, sabemos que na prática se motiva por questões político-econômicas de poder, nos levando, inclusive, a confundir “individualidade” com “individuação”. É sintomático, por exemplo, quando de antemão julgamos serem egoístas ou “estranhos” aqueles que procuram “encontrar-se” respeitando o próprio silêncio e isolamento. Bem como quando nossos olhos brilham de admiração (ou inveja) pelo colega que ficou milionário, mas relativizamos o fato dele não ter tempo para a família. Cada qual do seu jeito, subvertemos o significado de “sacrifício”, inerente primariamente à nossa interioridade, ao preço que pagamos para realizar quem somos e dar ouvidos à nossa alma, para acabar legitimando o  que nos oprime. Aí, também passamos a confundir “sacrifício” com “masoquismo”. Até porque, das mazelas que nos afligem voluntariamente, quais realmente tem significado e sentido para nós?

Mas como toda seriedade carece de leveza, voltemos um pouco com Chico Buarque (1971) à arte que imita a vida, quando, com força e beleza, cantou um operário que “subiu a construção como se fosse máquina / ergueu no patamar quatro paredes sólidas / tijolo com tijolo num desenho mágico / Seus olhos embotados de cimento e lágrima…”. Num jogo imagético e musical, “Construção” impõe uma cadência e troca de palavras a cada verso que reverberam num próprio processo de “desconstrução” e “construção” interior, sendo protagonizada por um profissional da construção civil que morre ao cair do alto da obra, “atrapalhando o tráfego”, a rotina, a massa. Acidente ou suicídio? Mais um dentre tantos que, todos os dias, dão entrada no pronto-socorro ou que saltam dos viadutos das grandes cidades. Apesar da dura crítica de cunho social, quantos de nós, independente de classe ou origem, portam-se como o personagem de Chico ao longo da vida ou dos dias? Quantas vidas não se dão carentes de significado e propósito maior, sobrevivendo, movendo a roda de um tal “progresso econômico” às custas de seu suor e dignidade enquanto indivíduos? Quantos conseguem de fato respirar ou relaxar nos breves momentos de pausa de uma dinâmica monótona e estereotipada? Quantos não recorrem à cachaça para anestesiar aquilo que sentem ou deixam de sentir? Como disse Josias, “ninguém é de ferro”; mas vivendo como se o fosse. Como dar vazão à interioridade quando se vive com o básico ou menos que isso?

No Brasil, a escravatura foi abolida em 1888, há 133 anos. Em alguns países, isso se deu antes; noutros, depois. A escravidão que nos aflige agora, no entanto, sem fronteiras, é interior, ao nos tornarmos cada vez mais livres para então sermos presos inconscientemente, individualistas e mesquinhos. Se somos livres de fato, “como” e “para quê” somos? Pois nesse ínterim, quando escassa a autoanálise, o homem cumpre a sina de “viver como se não fosse morrer e morrer como se não tivesse vivido”, como proferiu o Dalai Lama. Nem se realiza  individualmente, nem atua pelo coletivo. Etimologicamente, por sua vez, “individuação” vem do latim individuus, tendo “in” valor de negação para “dividuus” (divisível, separável); ou seja, “tornar-se indivisível”. Remonta, logo, à integração dos opostos, no sentido da totalidade e busca do ser integral, ao exercer sua singularidade diante do universal.

Como disse Tyler Durden, personagem de Brad Pitt em “Clube da Luta ”: “Nossa Grande Guerra é a guerra espiritual, nossa Grande Depressão é as nossas vidas”. Tyler é o alter ego sombrio e  insubordinado do então trivial narrador (personagem de Edward Norton), surgindo após uma séria insônia e crise existencial neste que era, ironicamente, empregado de uma companhia de seguros. O título não poderia ser melhor e a luta, diga-se de passagem, é generalizada, travada no campo de batalha das nossas angústias, como também ilustrado poética e metaforicamente no tratado ético hindu contido no Mahabarata, o Bhagavad Gita (VYASA, 2018). Porque de modo mais amplo, se enquanto espécie evoluímos o suficiente para promover liberdade, igualdade e fraternidade no mundo, bem como para combater absurdos nítidos à dignidade humana, isso ainda não impede (nem um pouco) de sermos completa e massivamente envoltos pelo caos.

A ideia de um clube de homens comuns, periodicamente se engalfinhando e expulsando seus demônios às escondidas não está longe da ficção, a nível macro, se pensarmos que temos tecnologia suficiente para viajar à Marte ou organização humanitária para se arriscarem na guerra por desconhecidos…, mas que 690 milhões de pessoas ainda passam fome no planeta, algo básico. Os jornais estão aí para todo mundo ver: do mesmo modo em que há acordos de paz e alianças internacionais para evitar confrontos catastróficos, em última análise é o estado de ânimo e de ambição de um grupo de homens poderosos que de fato mantém uma guerra nuclear afastada ou não. E se nos vangloriamos da existência da democracia, é de tempos em tempos, no mundo, que somos assolados por grandes movimentos políticos que explicitamente retrocedem em termos de justiça social, igualdade e consciência ambiental, inclusive se opondo a tais princípios, rumo a um cataclismo suicida e raivoso racionalizado pela distorcida ideia de “liberdade de expressão” (liberdade para ser estúpido, no caso).

Em relação a esse último, a história mostra que tais movimentos tendem a surgir em períodos de crise e instabilidade de uma nação, invocando figuras paternalistas que representam um resgate de valores tradicionais e de tomada de rédeas da situação, invocando preceitos nacionalistas e conservadores frente ao relativo desmonte antecessor da “ordem, da moral e dos bons costumes”. Sendo o “inconsciente coletivo” uma instância herdada a priori da nossa psique, o “Pai” costuma ser ativado em grupos enquanto arquétipo ordenador, ativo e incisivo, em busca de enfrentamento. Só que o inconsciente não pede desculpas tampouco licença, de modo que as experiências, vivências e projeções individuais é que dão o tom conjunto da expressão do arquétipo, por meio dos complexos pessoais, cada um do seu jeito.

Contudo, se a neurose advinda da rigidez do ego explica em parte o teor separatista e uníssono de certas paixões políticas e adjacentes, é o elevado grau de identificação com o objeto adorado, mediado pela ativação arquetípica, que sublima parcialmente o ego e implica em comportamentos de níveis delirantes e psicóticos até nos mais esclarecidos, já que o Verbo da Lei “é” e “está” no outro.

Sobre isso, JUNG (2013, p. 170) nos fala:

Quando a consciência subjetiva prefere as ideias e opiniões da consciência coletiva e se identifica com elas, os conteúdos do inconsciente coletivo são reprimidos. A repressão tem consequências típicas: a carga energética dos conteúdos se adiciona, até certo ponto, à carga do fator repressivo cuja importância efetiva aumenta em consequência disto. Quanto mais o nível da carga energética se eleva, tanto mais a atitude repressiva assume um caráter fanático e, por conseguinte, tanto mais se aproxima da conversão em seu oposto, isto é, da chamada enantiodromia. Quanto maior for a carga da consciência coletiva, tanto mais o eu perde sua consciência prática. É, por assim dizer, sugado pelas opiniões e tendências da consciência coletiva, e o resultado disto é o homem massificado, a eterna vítima de qualquer “ismo”. O eu só conserva sua independência se não se identificar com um dos opostos, mas conseguir manter o meio-termo entre eles. Isto só se torna possível se ele permanece consciente dos dois ao mesmo tempo. Mas esta percepção é dificultada não só  pelos chefes sociais e políticos, como também pelos mentores religiosos. Todos eles querem uma decisão em favor de uma determinada coisa e, com ela, a identificação incondicional com uma “verdade” necessariamente unilateral. Mesmo que se tratasse de uma grande verdade, a identificação com ela seria uma espécie de catástrofe, porque obstaria qualquer desenvolvimento posterior […].

Caso a figura de projeção possua aspectos unilaterais, inflexíveis, instaura-se o domínio arquetípico do Pai Terrível que, tendo seu respectivo complexo constelado, irrompe num contágio em massa que passa a relativizar ou defender o indefensável, mesmo diante das evidências. O medo se espalha no ambiente, castrando-se a criatividade e a espontaneidade. Vemos a discriminação institucionalizada de toda espécie (sexismo, homofobia, racismo etc), com sua consequente racionalização; além da repressão dos dinamismos de consciência matriarcal e de alteridade, que passam a ser encarados como “fraqueza” ou “frescura”. Afinal de contas, a título de nota, é só uma “gripezinha”, já que “o brasileiro tem de ser estudado, não pega nada; o cara pula em esgoto, sai, mergulha e não acontece nada”. Todavia, se ainda assim acontecer algo é melhor parar logo com o “mimimi”, pois “eu não sou coveiro, tá certo?”.

Em “Psicologia de Massas do Fascismo”, o psicanalista austríaco Wilhelm Reich discorre sobre a conformação psíquica de movimentos autoritários, que tem “família” e “tradição” como pilares fundamentais na construção de seus projetos políticos. Importante salientar que o autor fazia parte do Partido Comunista da Alemanha  (KPD), sendo expulso após a publicação do livro em 1933, por o considerarem crítico ao regime socialista da União Soviética :      

Do ponto de vista da evolução social, a família não pode ser encarada como a base do Estado autoritário, mas apenas como uma das mais importantes instituições que lhe servem de apoio. Mas temos de considerá-la como a principal célula germinativa da política reacionária, o centro mais importante de produção de homens e mulheres reacionários. Tendo surgido e evoluído em consequência de determinados processos sociais, a família torna-se a instituição principal para a manutenção do sistema autoritário que lhe dá forma […] A mulher sexualmente consciente, que se afirma e é reconhecida como tal, significaria o colapso completo da ideologia autoritária.  (REICH, 1988, p. 143-144 )

Nesse cenário, o “cidadão de bem” surge como uma caricatura pitoresca que legitima uma sociedade ainda mais fragmentada, dividindo-se entre os “de bem” e os “do mal”, reforçando todo tipo de preconceito e estereótipo, ignorando a existência de disparidades, luz e sombra, em toda pessoa. O que há por trás, por exemplo, do delírio em torno da existência do “kit gay” ou da ideia de que “educação sexual visa incentivar crianças a transarem” senão uma grande repressão sexual  neurótica? A total subversão, logo, passa a ser projetada e visualizada apenas no seu oposto consciente. Isso explica, em parte, a segregação e arbitrariedade em nome de Deus e “pela defesa da vida” de alguns cristãos, mesmo que para isso empunhem e defendam o livre uso de armas, já que o mal “só está nos outros, não em mim”. Respeitadas as devidas proporções, os indivíduos polarizados, independente do segmento, tais como robôs e máquinas, repetem discursos de ódio e de idolatria, disseminando fake news com insuficiência de senso crítico (leia-se “perda da racionalidade”, já que o irracional/inconsciente apoderou-se).

Nessas condições, o líder ou qualquer outro objeto de projeção vêm envolto numa áurea de “divino” ou “intocável”, através da possessão do complexo atuante, não se percebendo defeitos naquele que  é venerado, justamente por representarem  (os “defeitos”), inconscientemente, muito do que não reconheço plenamente em mim. Ou, por outro lado, se carrego conscientemente preconceitos de qualquer natureza e demais características arbitrárias de forma velada, o líder passa a me validar, tornando-se meu porta-voz. Independente do que ocorra, a culpa do que me aflige nunca é minha ou daquele que idolatro, mas sempre dos outros. Um “mito” é um mito, não obedece à simples esfera consciente dos homens. E, nesse ínterim, são repetidos padrões de idealização e de relativização julgados como pertencentes só àqueles que eu mais odiava e criticava como “vermelhos” e “subversivos”, por exemplo.

O poder de concentrar toda a capacidade num único ponto é sem dúvida alguma o segredo de certos êxitos, razão por que a civilização se esforça ao máximo em cultivar as especializações. A paixão, ou seja, a acumulação de energia em torno de uma monomania é o que os antigos chamavam de “deus”. E mesmo na linguagem atual isso ainda persiste. As pessoas dizem: “Fulano endeusou isso ou aquilo”. Estamos certos de que ainda podemos querer ou escolher e não percebemos que já estamos possessos, que o nosso interesse já é senhor e usurpou todo o poder. Esses interesses são como deuses: quando reconhecidos e aceitos por muitos, pouco a pouco formam uma “igreja”, agrupando ao seu redor todo um rebanho de fiéis. Chamamos a isso “organização”. Segue-se a reação desorganizadora, que pretende expulsar o demônio com Belzebu. A enantiodromia, ameaça inevitável de qualquer movimento que alcança uma indiscutível superioridade, não é a solução do problema, porque em sua desorganização é tão cega quanto em sua organização.   (JUNG, 2014, p. 84)

“Expulsando o demônio com Belzebu” é que, aos poucos, mas nitidamente, a “defesa da liberdade” vai se tornando “repressão”; o “patriotismo” se transforma em indiferença com os conterrâneos; a “ordem” se transmuta em caos institucional e o “combate à ditadura comunista” vira desejo de intervenção miliar e/ou de ruptura dos poderes constitucionais. Aquilo que abomino, com outras roupagens, logo se torna mais próximo de mim do que eu pensava: nas ruas há espelhos em que é possível ver a sombra, mas poucos a reconhecem.

A exploração existe “desde que o mundo é mundo”, quando alguém resolveu cercar um lote de terra e dizer “isso é meu”. Mas com o avanço do capitalismo, sedimentado pela Revolução Industrial, novas relações de consumo e poder se estabeleceram, valorizando em demasia o que se tem, o que se produz e, em seguida, o que se “parece ter” (algo tão observável nas redes sociais). Aumentamos paulatinamente a nossa densidade tecnológica às custas da perda de substância em nossas experiências (internas e externas), flutuando na evanescência da “modernidade líquida”, descrita por Bauman (2001), em que até a vida é medicalizada (para se comer ou não comer, dormir ou acordar, se concentrar ou relaxar…). A natureza até enviou uma partícula viral para olharmos no espelho em conjunto, mas alguns ainda estão estacionados ou tomados por aquilo que viram ou deixaram de ver diante da sombra do mundo (ou Umbra Mundi), tornando-se mais desumanos (ou cruelmente sinceros) do que antes.

Desse modo, o grau de barbárie que muitos só tinham ouvido falar em leituras, nas aulas de história ou em filmes sobre a 2ª Guerra Mundial passou a se insinuar diariamente nos jornais; seja pelo negacionismo escatológico, pela corrupção envolvendo vacinas em meio a uma pandemia mortal ou por experiências clínicas (assassinas) com fins escusos. Tal como em outras épocas da história, mesmo aqueles que deveriam se opor à barbárie, como médicos, cedem às fragilidades, ambições e outros ímpetos da sombra, invertendo a própria ética profissional. O caos, ao descortinar o véu da ingenuidade, tornou ainda mais evidente que tudo e todos podem ser explorados, se assim for permitido, na medida em que o outro passa a ser visto não pelo que se é, mas pelo que pode oferecer na perspectiva coletiva de um propósito. E se esse outro (ou eu mesmo) não sabe quem se é, em um segundo vira protagonista ou massa de manobra para as atitudes mais mesquinhas e horrendas imagináveis, independente de estudo, classe social ou profissão.

Sob uma perspectiva histórica, dizem que as gerações do final da década de 80 em diante são pouco resilientes e combativas porque nunca vivenciaram uma Grande Guerra, entre outras coisas. Que não passaram por tantas dificuldades, crises e mortes como as antecessoras do século XX. Nossos  pais, supostamente, travaram boa parte dos combates dos quais hoje usufruímos as conquistas, como as “Diretas Já”. No entanto, já temos dois impeachments em nossas costas (no 1º éramos “café-com-leite”, mas tá valendo), uma grande instabilidade/polarização política e os últimos 2 anos como os piores da história recente da humanidade, após a pandemia pela COVID-19. Este foi e continua sendo o grande teste da nossa geração.

Roberto Gambini, autor de “A Voz e o Tempo”, durante o 10º aniversário do Instituto de Psicologia Analítica da Bahia, em outubro de 2020, discorreu sobre o “sentimento” como uma função psíquica que, historicamente, a partir do Iluminismo, passou a ser preterida em relação à razão/pensamento, enquanto função de julgamento, como modus operandi de compreender e produzir o mundo. Pois ora bolas! Para a roda girar é mais importante produzir e entender como as coisas funcionam do que atribuir algum valor subjetivo a elas. Para a psicologia analítica, as outras duas funções, a saber, são  intuição e sensação (ambas de percepção).

Por muito tempo, o sentimento foi menosprezado como forma de aumentar os ganhos e reduzir os gastos, otimizando os lucros, o desenvolvimento científico e a acumulação de capital em detrimento das relações humanas e percepção da voz interior. Em paralelo, o Logos dominante e secular do patriarcado, ligado à ação, criação, liderança e interesse objetivo, quando unilateral buscou  cegamente o poder e vilipendiou nosso apelo de conexão representando por Eros, que acolhe, cuida e alimenta. Interiormente, a nível inconsciente, esses princípios atuam em nós através do animus  (contraparte masculina da psique da mulher) e da anima (contraparte feminina da psique do homem), respectivamente, construindo-se a partir das marcantes experiências com as figuras de referência do sexo oposto, ao longo da vida (principalmente o pai e a mãe). Logo, não adianta fugir: toda mulher carrega um homem dentro de si e todo homem possui seu lado feminino.

Qualquer observador apurado percebe, após 5 minutos de noticiário, que nosso mundo está doente. Psiquicamente doente. De forma preponderante, parece haver um processo de autofagia deflagrado por um masculino adoecido em seu radicalismo e ambição desenfreada, isento de contraponto e sensibilidade, como manifestado por governantes genocidas e prepotentes ou por feminicídios a cada hora e a cada dia. Aspectos tóxicos da masculinidade se expressam a torto e a direito na sociedade, com rigidez e agressividade, carente de receptividade e conexão, de modo que traumas intergeracionais se propagam entre famílias inteiras, através do alcoolismo, abandono parental, homofobia, abuso sexual ou suicídios na calada da noite. O homem contemporâneo já não está suportando carregar o peso dessa maquinaria, que se encontra enferrujada, suja de sangue e fuligem, prejudicial a si mesmo e ao próximo. O antropólogo e neurocientista Melvin Konner (2016), autor do livro “Women After All”, diz que “estamos no começo do fim da supremacia masculina”. Antes tarde do que nunca, eu diria, para que possamos reequilibrar essa balança.

Após a pandemia, é fato que hoje, mais do que nunca, a empatia se faz presente como condição  sine qua non para a preservação da espécie humana, já que todos estão conectados, necessitando se ver no próximo. No alemão, a palavra “empatia” é traduzida como “Einfühlung”, formada pelo  radical  ein (um) e o verbo fullen (sentir), remetendo a um sentimento de unidade. No entanto, só através do entendimento e superação de nossas paixões, por meio do autoconhecimento, realmente faremos valer o amor genuíno de nós mesmos para com o nosso semelhante, na contrapartida do poder, como disse Jung. A empatia, portanto, diz respeito não apenas a quem está ao meu lado, mas  também ao Outro que reside em mim mesmo, enxergando e respeitando-o. Caso contrário, estaremos fadados a servir ao poder de terceiros ou desse duplo que não reconheço internamente,  inconsciente, sombrio, passando por cima de tudo e de todos: o homem-máquina massificado, incoerente, destituindo a essência e o propósito da sua existência :

Nós precisamos de um entendimento maior da natureza humana, porque o único perigo real existente é o próprio homem. Ele é o grande perigo, e lamentavelmente não temos consciência disso. Não sabemos nada sobre o homem, sabemos muito pouco. Sua psique deveria ser estudada, pois somos a origem de todo o mal vindouro (JUNG, 1959)

Sim, o mundo precisa de terapia (mas sem romantismos, por favor; sem “psicologismos”). Não há de ser uma panaceia, como tantas outras proferidas ao longo dos tempos, porém não se pode negar sua relevância para um planeta ferido por quem mais devia preservá-lo, à beira da autodestruição.

Dentre tantos aspectos que individualmente precisamos elaborar, que possamos combater o bom combate frente às trevas da desumanidade, mas também nos permitir sentir e acolher nosso chamado interior de cura, integrando Eros e os opostos pela ativação da função transcendente, em que abraços, lágrimas e fraquezas, por mais difíceis ou dolorosas que sejam, transformam-se num bálsamo que (re)humaniza o metal e as engrenagens da nossa vida cotidiana.

Finalizemos voltando ao início, retomando perspectivas rumo ao futuro, ao recordar novamente Chaplin (1940), quando disse: “Pensamos demasiadamente e sentimos muito pouco. Necessitamos mais de humildade que de máquinas. Mais de bondade e ternura que de inteligência. Sem isso, a vida se tornará violenta e tudo se perderá.”

* Esse artigo é dedicado a Josias (nome fictício , baseado em um caso real ) e aos homens-máquina de qualquer natureza; mas também à minha antiga psicoterapeuta, Ana Cristina Fonseca Freire, cuja arte ajudou no “(re)vitalizar” e na busca do coração deste que já foi um Homem de Lata.   

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João Rana Vieira Sarquis – psicoterapeuta junguiano pós-graduado pelo IJBA (2017-2020) e médico residente de Medicina de Família e Comunidade pela SEMSA (Manaus – AM). Graduado em Medicina pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (2013). @rana.sarquis_psicoterapeuta

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