A Culpa

Por Carlos São Paulo

Madalena vivia como quem apenas dura, até que chegou o circo. O palhaço lhe fazia rir e a deixava feliz, no entanto, as acrobacias lembravam sua incapacidade de lidar com o dia a dia no casamento. Não se sabe a razão, mas foi em tal período que ela se sentiu com vida. 

Em um desses dias, notadamente diferente dos demais, Madalena saiu para ir ao seu trabalho na prefeitura. Mal deu os primeiros passos e já enxergou, na altura dos seus olhos, uma ameaça. Feições cruéis, uma mão firme e a imagem borrada de uma arma eram tudo de que podia se lembrar. Em um átimo, um pensamento lhe dominava: como seria descansar para sempre e deixar de existir? Ouvia de longe uma voz ríspida que ia sumindo, mas era alguém lhe dando ordens severas. Os flashes se repetiam e, depois dessa eternidade, sentiu apenas várias mãos levantando-a de uma poça de sangue. 

Numa face em desespero, encoberta por uma névoa, apareceu-lhe Inácio. Mas eram tantos rostos, ou talvez nem fossem rostos. Os sons eram muitos, e alguns eram como vozes humanas, enquanto outros, provavelmente, seriam ruídos eletrônicos. Em dado momento, ouviu a inconfundível voz que dizia: “Amor de minha vida, você não pode morrer.” Sim, era Inácio, seu companheiro de trinta anos. Outras vozes se afastavam diluindo no ar, ao passo que tudo foi escurecendo. Não sabia quanto tempo se passou nem onde estava. Aos poucos, foi percebendo luzes, rostos mascarados e começou a identificar os médicos. Agora sabia que estava viva. 

Veio a alta hospitalar e, ao voltar para casa, Madalena via os rostos contentes dos seus familiares. Carregada por mãos cuidadosas, foi depositada em seu leito. Ao seu lado, Inácio como quem fez uma viagem a outro mundo. Aquele mundo onde moram nossos sonhos e a história da vida que passou. De vez em quando, ele enganchava em algumas lembranças e se sentia espremido pelo que considerava ser erro seu.  

Em um dado instante, a convalescente sentiu sono e a deixaram só. Uma voz infantil a chamou de mãe tão insistentemente que ela acordou e não sabia se estava sonhando ou não. Nunca foi mãe. Seu marido era estéril, uma informação que teve quando, no passar dos anos, não conseguia engravidar. A visão insistiu em continuar. Madalena enxergava uma criança branquinha e com muito brilho, até que a viu sair pela porta e, sem poder ir atrás, gritou pedindo que ela não sumisse. 

Inácio, ao entrar no quarto, encontrou sua mulher em estado de choque. Depois de um longo silêncio, ela balbuciou: 

— Quem era a criança?

— Qual criança? — perguntou ele estranhando. 

— A que esteve aqui — informou ela com voz embargada.

— Oh, meu bem! Você deve estar delirando. Não há nenhuma criança nesta casa — afirmou ele com toda a convicção. 

Madalena parecia uma estátua feita de cera, numa posição de quem pede ajuda. Voltou a cochilar. Mal adormeceu, o menininho de pouco mais de 5 anos a chamou novamente. Seu olhos se arregalaram como quem vivia um fenômeno poltergeist. Seu marido, mobilizado pelo que assistiu, saiu em busca de ajuda. Trouxe médicos, benzedeiras e nada resolveu. Só lhe restava envolvê-la em seu amor com um olhar meigo, mostrando sua satisfação em cuidar dela. 

Inácio a colocou no colo e ela o abraçou como nunca tinha feito. Logo depois o casal se mostrava com a beleza da escultura Pietá. Enquanto isso, Madalena dormiu e teve um sonho que a deixou com um semblante de criminosa disfarçando-se de santa. 

O pensamento de Madalena, como um tapete mágico, mergulhou no tempo. O seu olhar encontrava, com ternura e arrependimento, o olhar de Inácio. Contou a ele do seu envolvimento com o palhaço que tanta alegria lhe trouxera. Contou também que optaram pelo aborto. A criança hoje teria cinco anos. A mulher caiu no choro. Inácio, com a postura de quem compreende a natureza do sexo, deu uma volta por cima da decepção e respondeu que desejava que ela tivesse trazido ao mundo aquela criança, afinal, ele também já havia pecado.   

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Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br