A sombra, o Sucesso e a Individuação

O que é o sucesso?

O que atualmente é entendido por sucesso pode ajudar ou atrapalhar nossa jornada de descobrimento da alma e da nossa essência?

Se atrapalha, seria então esse sucesso real ou uma ilusão criada para dar uma satisfação para si e para outros, nos aprisionando e criando um refém?

Existe um sucesso real que possa trazer mais compreensão e clareza e nos coloque em contato com um sentido maior de existência?

Nesse texto será abordada a relação do sucesso com o que na psicologia analítica chamamos de sombra e de processo de individuação. A ideia é refletir sobre a finalidade do sucesso, pois dependendo do modo como nos relacionamos com ele, o sucesso funcionará como um ruído que impedirá a escuta da nossa voz interior. A hipótese é que o verdadeiro sucesso está relacionado com o nosso trabalho de integração da sombra que leva automaticamente a uma sensação de sentido de vida que é o processo de individuação.

Na obra de Robert Louis Stevenson, “O Médico e o Monstro”, um médico forçadamente adaptado a sociedade vem sofrendo rompantes inesperados e dando espaço para uma outra personalidade emergir dentro dele, um monstro que tem características inversas às do médico bem comportado. Segundo Jung:

“Quem não conhece a si mesmo não pode conhecer o outro. Em cada um de nós existe também um outro que nós não conhecemos.” (OC 10/3 par 325)

À medida que passamos a desenvolver o ego na nossa infância, dois sistemas relacionados também começam a se formar gradativamente, a sombra e a persona. As personas são as máscaras usadas para nos adaptarmos aos ambientes sociais, são muito importantes nos relacionamentos mais diversos. Personas bem elaboradas abrem portas, podem contribuir para que sejamos mais adequados aos grupos que participamos e facilitar a vida, mas quando não são bem elaboradas podem criar problemas na relação com as outras pessoas. Porém não devemos nos perder nelas, é preciso não se deixar envolver demais pelas personas e nos afastar da própria alma, pois a persona não tem substância real.

A sombra representa os atributos desconhecidos pelo ego, aspectos que podem se tornar conscientes e que por isso projetamos nos outros. A sombra não se opõe a persona como pode parecer e sim ao próprio ego.

 As projeções passam a acontecer quando em nossos relacionamentos nos deparamos com alguém com características não aceitas por nós, como se fossem “ganchos” aguardando para que a gente “pendure” irritações, julgamentos, acusações e demais conteúdos neles. Acreditamos que o outro causou a irritação sem perceber que foi o próprio material negado na sombra que traz essa emoção.

Também podemos projetar coisas boas nos outros, pois a sombra não é só formada por traços negativos. Reprimimos esses traços não somente por serem prejudiciais, mas porque não se encaixam às exigências sociais vigentes. Muitas características não aceitas pelos familiares durante o desenvolvimento da criança podem incluir coisas boas para ela, dons e talentos que passaram a ser rejeitados e a partir daí não mais acessados.

Então é importante que possamos nos observar e perceber que esse material tem origem dentro de nós, o próprio inconsciente traz o que está na sombra e acabamos por projetar na outra pessoa. Essa capacidade de observação é um comportamento importante a ser desenvolvido, pois é uma forma de perceber o que foi reprimido.

Outra forma de reconhecer a sombra é através dos sonhos que também oferecem uma oportunidade de o inconsciente trazer o que precisa ser integrado. Eles mostram aspectos de nós que por diferentes motivos preferimos não olhar de perto.

No processo de integração da sombra é possível se deparar com elementos carregados de energia criativa, capazes de renovar e trazer um novo senso de vitalidade para nossa vida. É necessário que o ego renuncie ao orgulho e a vaidade, pois o que antes era feito por ele sem critério, agora passa a necessitar de uma espécie de filtro. É como se o ego não tivesse sido criado para seguir seus impulsos absolutistas, mas sim para servir na realização da totalidade da psique.

Um exemplo de não integração da sombra é quando criamos uma máscara de “bonzinho” na tentativa de sermos inofensivos pois é “feio” ser agressivo socialmente, e assim colocamos a agressividade na sombra, passando a sofrer as consequências. Então sem poder dizer não, podemos ficar mecanizados. E sem essa força que poderia contribuir para criar algo novo, passamos a ter uma vida sem sentido e propósito. Esse excesso de moralidade bloqueia o acesso às partes mais profundas da psique. Portanto sem a firmeza necessária teremos dificuldades em conseguir sucesso enquanto não integrarmos novamente esses aspectos à personalidade. É preciso coragem e força de vontade para iniciar esse trabalho, pois ele é desagradável e cria fricções internas.

No filme “O Médico e o Monstro” não é o que acontece, pois ele morre no final do filme por não conseguir realizar a integração do seu lado sombrio. Sua necessidade de perfeição e de ser aceito é tão grande que o papel de médico fica colado nele e acaba criando uma cisão, onde ao se esforçar para matar o monstro, acaba matando a si mesmo, sem conseguir criar harmonia.

Já em outro filme chamado “Eu, eu mesmo e Irene” o personagem tem sucesso ao conseguir integrar o material sombrio. O protagonista Charlie é um policial bonzinho, de uma pacata cidade de interior, que não é respeitado por ninguém. Todos fazem o que querem na cidade, pois ele não tem a autoridade que se espera para o papel que desempenha, não tem uma persona adequada para a função que exerce. Por causa do rompimento traumático de seu casamento, perdeu contato consigo mesmo, reprimindo seus sentimentos e fica sem conseguir lidar com eles adequadamente. Logo passou a sofrer pressões inconscientes que precisavam ser integradas, pois não conseguia mais se controlar por mais esforço que fizesse. Forças vulcânicas internas passaram a surgir inesperadamente, mas o resultado da integração da sombra foi um sucesso. A sombra é integrada no final do filme com a tomada de consciência do personagem, que consegue com esforço de observação, fazer com que seus dois lados se harmonizem, criando o final feliz do filme.

Vale ressaltar que é nossa escolha tornar a sombra amiga ou inimiga, pois ela é como se fosse uma outra pessoa, sendo assim às vezes cedemos, outras resistimos e outras a acolhemos com carinho. A sombra só se torna um adversário quando é ignorada ou incompreendida.

Por mais que assimilemos a sombra, sempre vai ter mais para assimilar enquanto estivermos vivos, daí vem o termo ego estruturante. Quanto mais o ego resiste sendo rígido, mais dificuldade vai ter e o conteúdo da sombra vai acabar emergindo do mesmo jeito, por isso é melhor optar voluntariamente por fazer a integração da sombra, possibilitando o sucesso.

O significado da palavra sucesso no dicionário é “aquilo que sucede; êxito; bom resultado”.

Portanto o processo de integração da sombra é um caminho ao verdadeiro sucesso.

No contexto deste texto, para facilitar o entendimento, o sucesso será dividido em dois tipos, um externo e outro interno.

O externo seria o conceito mais popular de sucesso, onde as pessoas se esforçam para ter atenção, buscando poder, dinheiro, fama, ou seja, aceitação vinda de fora para dentro. Tem uma necessidade de reconhecimento, status, pois na falta de validação interna essa busca se torna o aparente sentido da vida, para poder sentir algum valor pessoal, possuir algum espaço, ser alguém.

Mas essa busca pelos holofotes externos somente indica a falta de percepção do mundo interior, falta de acolhimento de si próprio, dos assuntos que não gostamos de ver dentro da gente e que nos coloca em fuga, numa sempre crescente tentativa de aceitação externa.

Quando conseguimos encarar nossas fraquezas internas, nossos limites, aceitando e acolhendo nosso lado rejeitado, desinteressante, feio, que temos vergonha e medo de mostrar para os outros, aí sim estaremos dando um passo para a integração da sombra e abrindo as portas do sucesso interno e verdadeiro.

Ser uma celebridade, uma pessoa famosa com uma supervalorização da persona, um aparecimento exagerado nas mídias sociais, é popularmente conhecido como sucesso. Algo que beira o narcisismo, pois a imagem que se mostra tem maior importância do que o que vem da alma, do que precisa ser percebido delicadamente por dentro e que não é fácil de fazer, pois exige esforço, assim todos querem soluções fáceis e práticas, como tomar um comprimido que resolva tudo, deixando o trabalho incompleto e a superficialidade imperando como solução.

O esforço de obter o sucesso externo é antinatural, é forçado, pois parte do medo, da ausência de contato interno consigo, ao passo que o sucesso interno emerge naturalmente, porque é o caminho da alma.

É o temor de não sermos amados que cria um senso de inferioridade e que está por trás dessa necessidade de reconhecimento exagerado externo, enquanto que o amor precisa ser descoberto por si mesmo dentro no seu universo interno.

Para ilustrar podemos citar o exemplo de uma pessoa bem sucedida que trabalha no mundo empresarial, de alto padrão e com todo tipo de estrutura, mas que sente um vazio interno, uma falta de sentido, onde a busca pelo sucesso incessante atropela ela própria. Quanto mais habitualmente faz isso, mais distante de si ela fica, pois a máscara vai colando nela, seduzida pelo poder conquistado por seu sucesso externo e resultando no aumento do medo da auto exploração desse vazio cada vez mais assustador. Por consequência, alimenta novamente o desejo de continuar a busca por reconhecimento, criando um ciclo que necessita de um “estalo” para ser percebido e começar a ser quebrado. E nem sempre percebemos esse “estalo”: nosso ego é capaz e apresentar excelentes justificativas para camuflar os convites da alma para uma ampliação de consciência.

Tudo é impermanente e portanto o sucesso externo não pode ser mantido à força, ele nos torna refém de uma imagem e acaba por criar problemas como doenças, que é a forma do inconsciente comunicar que algo está errado. Para Jung, finalidade básica, tanto da neurose quanto de qualquer manifestação do inconsciente, é a de compensar uma atitude unilateral da consciência, revelando a atitude necessária para que o ego possa integrar o material reprimido.

A partir do êxito na integração da sombra, o sucesso interno tem potencial para refletir fora, pois a psique mais organizada tem acesso a uma qualidade energética diferente e mais condizente com sua evolução. Essa expressão cria ressonância com o processo de individuação, que é o tornar si mesmo no todo, assumindo toda sua grandeza, com suas insuficiências e suas possibilidades.

“Individuação significa tornar-se um ser único, na medida em que por “individualidade” entendermos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável, significando também que nos tornamos o nosso próprio si-mesmo.” (OC 7/2 par 266)

Concluindo, o sucesso interno é um caminho menos trilhado que o simplista externo, pois dá trabalho e precisa de coragem, é preciso abandonar a forma de viver conhecida por algo que é incerto. Também acaba criando isolamento, pois a pessoa quanto mais segue esse instinto interno mais vai se isolando, sem que  seus amigos e pessoas da família consigam entender essa nova realidade, pois eles não tem prontidão para mudar, se engajar e viver esse caminho.

Por isso é preciso escutar a voz interior que mostra o caminho do desenvolvimento da personalidade que é mais importante do que seguir a multidão com suas mesmices e vidas convencionais, apegados a tudo que é coletivo com temores, convicções e métodos, em detrimento de um caminho pessoal com fidelidade a sua própria lei, com pistis, nas palavras de Jung:

“Enfim, o que impulsiona a alguém a escolher seu próprio caminho, e a elevar-se como uma camada de nevoeiro acima da identidade com a massa humana? Não pode ser a necessidade, pois esta atinge a muitos e todos estes se salvam pelas convenções. A decisão moral também não pode ser, pois geralmente todos se decidem pela convenção. O que, pois, dá o último impulso a favor de algo fora do comum?

É o que se denomina designação; é um fator irracional, traçado pelo destino, que impele a emancipar-se da massa gregária e de seus caminhos desgastados pelo uso. Personalidade verdadeira sempre supõe designação e nela acredita, nela deposita pistis (“confiança”) como em Deus, mesmo que na opinião do homem comum seja apenas um sentimento pessoal de designação. Esta designação age como se fosse uma lei de Deus, da qual não é possível esquivar-se. O fato de muitíssimos perecerem, ao seguir seu caminho próprio, não significa nada para aquele que tem designação. Ele deve obedecer à sua própria lei, como se um demônio lhe insuflasse caminhos novos e estranhos. Quem tem designação (Bestimmung) escuta a voz (Stimme) do seu íntimo, está designado (bestimmung).” (JUNG, OC vol. 17 par 299-300)

O sucesso verdadeiro compromete nossa totalidade psíquica. É parte importante do desenvolvimento e amadurecimento da personalidade chamado por Jung de individuação e é um processo que não termina nunca e que passa pela integração da sombra.  Leva a pessoa a se encontrar com o centro organizador e regulador da  psique, contribuindo para o sucesso de forma geral na sua vida, pois passará a ser mais ela mesma, mais autêntica. Esses sinais orientadores vem do Self e cabe ao ego se entregar e servir a esses impulsos para a autorrealização criadora, única e individual, que busca descobrir algo dentro de nós ainda não conhecido por ninguém.

Raphael Ruiz Amorim – Analista em formação pelo IJEP – scabom@gmail.com

Referências: 8

JUNG, C.G. Obras Completas vol. 7/2 – O Eu e o Inconsciente. Vozes, 2015.

JUNG, C.G. Obras Completas vol. 10/3 – Civilização em Transição. Vozes, 2013.

JUNG, C.G. Obras Completas vol. 17 – O Desenvolvimento da Personalidade, Vozes, 2013.

ZWEIG, C. e ABRAMS, J. Ao Encontro da Sombra. Cultrix, 1994.

BLY, R. João de Ferro – Um livro sobre homens. Campus, 1991.

SANFORD, J.A. Mal – O lado sombrio da realidade. Paulus, 1988.

NEUMANN, E. Psicologia Profunda e Nova Ética. Paulinas, 1991.

HOLLIS, J. Os Pantanais da Alma. Paulus, 1999.

HOLLIS, J. A Passagem do Meio. Paulus, 1995.