A sombra do curador

Em “Spotlight”, filme de 2015 baseado em fatos reais, vemos como um grupo de repórteres do jornal The Boston Globe tornou público em 2002 uma série de escândalos de pedofilia, encobertos pela Arquidiocese de Boston. Como consequência, o Cardeal estadunidense Bernard Law foi forçado a renunciar a seu posto de Arcebispo de Boston. Seis anos depois, o Cardeal australiano George Pell, responsável pela Secretaria para a Economia da Santa Sé e considerado o terceiro mais importante na hierarquia do Vaticano, foi condenado por crimes de pedofilia.

No Brasil, nesse mesmo período, vieram à tona dezenas de acusações de abuso sexual contra o médium/curandeiro brasileiro João de Deus, assim como uma entrevista da escolhida para o Ministério de Mulheres, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, relatando como ela foi violentada dos 6 aos 8 anos por dois pastores evangélicos que frequentavam a sua casa.

Ao comentar as denúncias que envolviam João de Deus, o médium João Berbel afirmou que “um médium só é derrubado por dinheiro, sexo e vaidade.” Estariam os sacerdotes, que passam a vida abstendo-se das paixões mundanas, buscando a elevação espiritual e desempenhando as funções de guia e curador de almas feridas, especialmente sujeitos a tais compulsões?

Em culturas antigas, os papéis de curar, ouvir, aconselhar e de lidar com o desconhecido eram acumulados pela figura do sacerdote ou mago. Hoje, estas funções são desempenhadas de formas específicas por profissões distintas, principalmente por médicos, psicólogos e líderes religiosos. Jung (2012) relata como o exercício da direção espiritual, papel outrora típico do líder religioso, tem recaído cada vez mais sobre a figura do psicoterapeuta, já que o doente da alma precisa de alguém que o acolha sem o juízo de valor moral típico dos pastores protestantes e  que ofereça mais que a simples escuta da confissão católica.

Se nas religiões o abuso sexual é uma realidade desoladora, na psicoterapia o abuso está longe de limitar-se à violação física. As séries dramáticas “In Treatment” (2008), “Chance” (2016) e “Gipsy” (2017) retratam a rotina de psicoterapeutas que, em algum momento de suas carreiras, ultrapassam o limite de suas competências a ponto de interferir diretamente na vida pessoal dos seus clientes – o que, a depender da natureza desta atuação, caracteriza o abuso. Há uma linha tênue entre a identificação com o sofrimento do outro, o desejo de mitigar seu sofrimento e a manipulação psicológica e interferência direta na vida pessoal do paciente.

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche, em sua obra “Genealogia da Moral”, afirma sobre a relação entre doentes e curadores que:

“Compreende-seassim […] a necessidade de médicos e enfermeiros que sejam eles mesmos doentes […]. A dominação sobre os que sofrem é o seu reino, para ela o dirige seu instinto, nela encontra ele sua arte mais própria, sua mestria, sua espécie de felicidade. Ele próprio tem de ser doente […] para entendê-los – para com eles se entender; mas também tem de ser forte, ainda mais senhor de si do que dos outros, inteiro em sua vontade de poder, para que tenha a confiança e o temor dos doentes, para que lhes possa ser amparo, apoio, resistência, coerção, instrução, tirano, deus” (NIETZSCHE, 1998, p. 115).

Da citação acima, fica claro que Nietzsche estava longe de romantizar o papel do sacerdote/curador, enfatizando os aspectos negativos da vontade de poder e domínio sobre os “doentes”. Isto transparece de modo aparentemente inadvertido na fala do médium João Berbel, ao comentar o caso do João de Deus: “Lobo só cai em armadilha de lobo. Ovelha não cai em armadilha de lobo.” Ao pôr o líder religioso numa relação metafórica com os fiéis (ovelhas), o médium inconscientemente o comparou ao predador (lobo), e não ao pastor.

Para Jung, não existe na psique conteúdo que não esteja ligado a seu oposto. Se na consciência se vive o poder, no inconsciente há a impotência. Se na consciência há a virtude, no inconsciente está o defeito. Este “molde” psíquico que rege os comportamentos e emoções humanas e onde os opostos estão indissociavelmente ligados chama-se arquétipo. Assim, ambos o pastor e o lobo são faces opostas contidas no mesmo arquétipo, que chamamos de “curador-ferido”. Como afirmou Nietzsche, não há curador que antes não seja um ferido, assim como o ferido pode tornar-se um curador. Isto é expresso claramente na cultura Iorubá: Omolu (ou Obaluaiyê) é o orixá que tanto causa varíola, doenças contagiosas em geral e até epilepsia como também promove sua cura. O mito conta que, tendo sido fruto de um adultério, Omolu nasceu com varíola como consequência do pecado dos pais, herança que simbolicamente expressa a forma como boa parte dos traumas psíquicos são causados nos filhos pela relação conturbada entre os pais. Ele foi então abandonado (isto é, ferido também na alma), tendo tornado-se curador após ser adotado e curado por Yemanjá. Em seus estudos sobre a Alquimia, Jung (2011m) chama a atenção para a ambiguidade do termo grego φάρμακον (phármakon), que designa tanto “remédio” quanto “veneno”. O “mercúrio filosófico”, enquanto substância arcana ou secreta da transformação alquímica, teria tanto o poder de curar como de matar, duplicidade simbolizada nas serpentes que aparecem no Caduceu de Hermes (ou Mercúrio, entre os romanos). Na psicoterapia, isto pode ser entendido pelo fato de que na raiz do sofrimento psíquico está uma ferida ou trauma que necessariamente deve ser acessado e revivido, mas nem sempre consegue ser superado. Por incluir o manejo de sentimentos e memórias dolorosas da qual havíamos nos protegido através do esquecimento, da fuga e do desenvolvimento de atividades substitutivas, o próprio processo terapêutico é fonte de sofrimentos que nem todos estão aptos a vivenciar, sendo possível que, em alguns casos, a tentativa de cura ofereça risco igual ou maior do que a própria doença.

O terapeuta pode ser comparado ao pastor, mas a sua sombra é a do lobo, o predador das ovelhas. Se, em vez tratar a vontade de poder como sintoma essencial da sua própria neurose (e risco ocupacional do qual ele sempre deve estar ciente), o curador se permite tomar gosto pela influência que tem sobre o outro, ele fatalmente cairá na “armadilha do lobo”. Na simbologia alquímica, a sombra do Sol é o Sol Niger ou Sol Negro, sendo também representado como um leão verde, serpente ou dragão (JUNG, 2011m). A cor verde, aqui, simboliza o caráter vegetativo da psique inconsciente, isto é: possui uma atividade autônoma mesmo sem consciência para guiá-la.

Estes símbolos aparecem em profusão na mitologia, religião e ficção como maior o inimigo do herói. Os leões são inimigos do grego Héracles e do bíblico Sansão; bestas comparáveis ao Sol Negro da Alquimia podem ser encontradas em “O Senhor dos Anéis”: o olho de fogo Sauron, faminto por poder e o Balrog, sombra flamejante temida pelo mago Gandalf. O homem-serpente Voldemort é o inimigo mortal do bruxo Harry Potter. Em diversos mitos heróicos, o dragão aparece como aquele que tem um apetite insaciável por donzelas virgens, como Yamata-no-Orochi, o dragão-serpente de 8 cabeças da mitologia Xintoísta. Lúcifer, seja como serpente edênica ou dragão apocalíptico, é responsabilizado pelos desejos pecaminosos dos homens. A fraqueza do Super-homem, herói voador que tira sua força do Sol, é uma pedra de cor verde (que também é a cor símbolo do dinheiro). Todas estas imagens são representações psicológicas da fúria destruidora, ambição por poder, dinheiro, vaidade e desejo sexual desmesurados que atormentam a alma daquele que busca a iluminação.

Sobre este assunto, nos fala o psicoterapeuta Suíço Adolf Guggenbühl-Craig:

“Todos os que atuam nas profissões sociais, trabalhando para ‘ajudar a humanidade’, apresentam motivações psicológicas extremamente ambíguas para suas ações. Em sua própria consciência e diante do mundo, o assistente social vê-se forçado a encarar o desejo de ajudar como sendo sua motivação primordial. Mas nas profundezas de sua alma o oposto simultaneamente se constela – não o desejo de ajudar, mas o de ter poder e sentir alegria em despotencializar o ‘cliente’. […] Na vida cotidiana, a consciência nos incomoda quando nos entregamos além da conta ao desejo de poder. Mas o sentimento de culpa desaparece por completo da consciência quando nossas ações, ainda que inconscientemente motivadas pelo desejo de poder, são conscientemente justificadas por algo supostamente correto e bom” (GuggenbÜhl-craig, 2004, p.19).

Há sempre duas faces na motivação de ajudar ao outro. Escolher ignorar a presença indissociável do desejo de dominar junto com o desejo de cuidar é uma receita para que este impulso aos poucos envenene a nossa prática e eventualmente nos faça sua presa. Quanto maior o sucesso, maior o poder e o risco.

Para Jung, “o psicoterapeuta está obrigado a um autoconhecimento e a uma crítica de suas convicções pessoais, filosóficas e religiosas, tanto quanto um cirurgião está obrigado a uma perfeita assepsia. O médico deve conhecer sua ‘equação pessoal’ para não violentar seu paciente” (JUNG, 2011c, p. 173). Se o pastor de almas, qualquer que seja sua profissão, não penetra até às profundezas da sua própria, dificilmente está a salvo do perigo de se transformar num predador. A este respeito, o conselho a ser seguido é o ditado antigo citado por Jesus: “médico, cura-te a ti mesmo!”

Paulo Nunes

Médico graduado na UFBA em 2005.

Psicoterapeuta Junguiano pós-graduado no IJBA

Atendimentos em Salvador. Contato: (79) 99859-1753 (Telefone e Whatsapp).

Instagram.com/paulonunes181

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FOLHA DE SÃO PAULO, Espírita atrai milhares em SP e diz que um médium só cai por dinheiro, sexo e vaidade. https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/12/espirita-atrai-milhares-em-sp-e-diz-que-um-medium-so-cai-por-dinheiro-sexo-e-vaidade.shtml, acesso em 20 de agosto de 2019.

GuggenbÜhl-craig, A. O abuso do poder na psicoterapia e na medicina, serviço social, sacerdócio e magistério. 2ª ed.São Paulo:Paulus, 2004.

JUNG, C. G. Civilização em transição. Petrópolis: Vozes, 2011c.

JUNG, C. G. Escritos diversos Vol. 11/6. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis: Pesquisas sobre a separação e a composição dos opostos psíquicos na alquimia, vol 1. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 2011m.

NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Ō, Y. The Kojiki: Records of ancient matters. Tradução de Basil Hall Chamberlaim. [S.L.], 1919. Disponível em https://www.sacred-texts.com/shi/kj/index.htm. Acesso em 20 de agosto de 2019.