A Igreja do Diabo

O conto “A Igreja do Diabo, de Machado de Assis, talvez seja o seu melhor trabalho como contista, publicado no livro “Histórias Sem Data”. Nesse conto o leitor entra em contato com as dimensões contraditórias da natureza humana, diante de uma mesma realidade. Nele percebemos um Diabo com o espírito semelhante ao nosso.

Tal Diabousa uma alegoria onde compara capas de veludo com franjas de algodão a um homem bom que pode ser puxado pelo mau; e capas de algodão com franjas de seda a um homem mau que pode ser puxado pelo seu lado bom. A contradição humana é da sua própria natureza que, de acordo com o pensamento junguiano, não é nem boa e nem má, apenas existe. A depender de como a consciência focaliza os acontecimentos e como o faz, essa natureza poderá ser vista como o céu ou o inferno. Jung, em seu Livro Vermelho, nos relata que inferno é quando você sabe que todas as coisas sérias que você planejou com você são também risíveis; que tudo delicado é também brutal; que tudo bom é também mau; que tudo alto é também baixo e que tudo prazeroso é também vergonhoso.

Nossa consciência não consegue abarcar todos os lados da personalidade. Daí não conseguirmos unir esses elementos dispersos no vaso que é destinado a ser receptáculo de todo o ser fazendo surgir um mundo dividido e essa é a eterna contradição humana. É mais fácil para a consciência fragmentar esse todo. Machado então traz um Diabo que ao competir com Deus mostra essas dimensões que aparecem como vícios e virtudes que se misturam na formação do nosso ser.

O Diabo precisou existir para que as manifestações instintivas e pouco elaboradas do homem pudessem ser contidas e assim fazer a sociedade evoluir. Ele veio como um instrumento de Deus. As religiões ensinavam o temor a Deus em lugar de uma consciência maior sobre o bem comum, como nos leva a pensar uma cultura cristã mais elaborada. Para essa cultura não é o temor que leva à evolução a sociedade humana, mas a consciência amadurecida de nascer, viver, crescer e morrer com dignidade e honra.

Nos séculos XII e XIII, os teólogos definiam o mito do Diabo cristão como forma aterradora, capaz de levar o homem ao sofrimento de perder sua alma. Foi assim com os pintores renascentistas. Naquela época uma pessoa tomada por um complexo que a tornava subitamente alterada, como perdendo a cabeça, era isso atribuído ao Diabo. Os filósofos do Iluminismo desmistificaram esse Diabo. E desde o século XX Ele foi banalizado como mercadoria de consumo. Aparece em histórias em quadrinhos, heavy metal, jogos eletrônicos, nos carnavais e etc.

Machado descreve que quando o Diabo,rindo, chega ao céu, diz a Deus: “…Não venho pelo vosso servo Fausto, mas por todos os Faustos do século e dos séculos”. Uma referência ao texto de Goethe que nos reporta a Mefistófeles que, como um Diabo, consegue levar Fausto a se interessar pelos prazeres mundanos e perder sua alma. Porém termina por perder para Deus. O esforço de Fausto em sua vida comprou sua salvação. Nesse momento de encontro de Deus e o Diabo, um homem virtuoso dá entrada no céu e Deus relata ao Diabo as virtudes daquele ser. Essa passagem lembra o Livro de Jó. Um texto bíblico que nos mostra Deus e o Diabo como aspectos de um mesmo fenômeno vivido pelo homem quando este alcança maior maturidade depois de percorrer sua estrada de desafios e sofrimentos. O Diabo refere-se ao céu como uma hospedaria de preço alto. Uma alusão de o quanto é difícil o homem poder viver apenas um aspecto de sua natureza, subtraindo de sua totalidade todos os outros aspectos negados.

Nesse conto o Diabo propõe uma doutrina muito semelhante à de Deus, a diferença é que uma é a negação da outra. Ele defendeu a inveja, a gula, a preguiça e toda liberdade para manifestações dos desejos. Defendeu que o amor ao próximo era “uma invenção parasita” e que ele não merecia nada além da indiferença. Para experimentarmos uma realidade temos de conhecer o seu outro lado. O Diabo triunfa ao fundar a igreja, mas logo ele percebe as transgressões que seus fiéis veem cometendo. Tais fiéis praticavam às escondidas atos de arrependimentos e ternuras. Ele foi perdendo os seus adeptos e diminuindo o seu poder. O Diabo desceu à terra para lutar contra o bem e acabou colaborando com Deus. Perturbado, ele volta aos céus sem compreender o acontecido, e Deus o consola com uma frase, a propósito da alegoria: “Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana”.

O filosofo tcheco, VilémFlusser, em seu livro A História do Diabo, nos diz que o nacionalismo é a máscara romântica e diabólica da luxúria. “Cantam-se hinos militares a plenos e emocionados pulmões enquanto se mata quem nunca se tinha visto antes, ou enquanto se morre nas mãos de quem não nos conhece”. “Por isso, pode-se afirmar que o nacionalismo é uma das vitórias mais impressionantes do Diabo”. Flusser reconhece no Diabo um espírito semelhante ao nosso e talvez tão infeliz quanto o nosso.

Em nossa caminhada subindo a Torre de Babel, vamos deixando pelo caminho todo tipo de sofrimento humano e assistimos ao Diabo aparecer na forma de uma religião fundamentalista enfeitando o corpo dos jovens com bombas de alto poder que o leva à morte e àdas demais pessoas desconhecidas, mas com direito de viver.


Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br  / www.ijba.com.br