A alma e o fenômeno transgênero na atualidade

Em linhas gerais, o conceito de transgeneridade, atualmente em discussão nas ciências humanas em geral, se refere a uma condição possível de indivíduos assumirem uma identidade de gênero, masculina ou feminina, diferente da concordante com suas características biológicas, identidade esta designada quando de seu nascimento (ou previamente, nos exames pré-natais). Enfim, a pessoa sente algo, em termos de gênero, que “discorda” ou diverge do que aparenta ser sua conformação biológica. É bastante discutível, hoje, o conceito de gênero se apoiar nas diferenças biológicas. O transexual seria aquele transgênero que busca as modificações corporais necessárias para a adequação de sua identidade de gênero, a partir de intervenção médica.

A experiência de variações de gênero está ao nosso redor há séculos, na mitologia (como veremos adiante) e na vida cotidiana. Com o passar do tempo, os conceitos de sexo, gênero, orientação sexual e papel de gênero se tornaram mais diferenciados. O sexo do corpo é diferente do gênero, que se baseia em como alguém experimenta a si mesmo. Papel de gênero se refere aos comportamentos coletivos e modos de se estar tipicamente associado a um gênero, enquanto que orientação sexual se relaciona com o objeto pelo qual se tem atração sexual. Foi somente em fins do século XIX, por exemplo, que o termo “homossexual” foi primeiramente usado e não havia um entendimento de orientação sexual como algo distinto da identidade de gênero até meados do século XX (Marsman, 2017).

Enquanto a manifestação da transgeneridade como fenômeno cultural parece se basear numa tendência coletiva ligada às sensações (a vivência corpórea e literal do outro em mim), e a transformação de um sexo para outro visto como uma forma chocante da expressão humana, sua emergência representa, por outro lado, uma mudança coletiva em direção a uma forma nova ou diferenciada de experimentar e expressar sexo e gênero: estamos diante de um movimento da alma do mundo. O que essa alma quer quando procura o outro sexo, o não dado pela natureza mas que faz uma convocação psíquica e social ao mesmo tempo?

Como aponta Marsman (2017), por causa da fixidez assumida do gênero, muitos teóricos de gênero consideram a cultura como apegada ao binário macho/fêmea socialmente construído, ainda que não-essencial. Para o autor, não podemos na verdade escapar deste binarismo. O dual (two-ness) tem uma base arquetípica contra o qual se mede a própria experiência. Pessoas não-transgêneras se identificam tipicamente com um aspecto particular do binário. A transgeneridade nos permite re-visar o gênero como um espectro, mas como esfera em vez de linear, com a experiência de gênero individual sendo uma mistura específica de macho/fêmea que está separada da forma corporal do papel de gênero; todos os quais poderiam também estar localizados em pontos diferentes ao longo da esfera, talvez até mesmo cambiável com o tempo.

Rachel Pollack (1995) traz importantes observações sobre o fenômeno da transexualidade. Enxerga a transexualidade do ponto de vista da paixão, não da lógica. Em sua paixão, a pessoa já se considera do outro sexo que não o biológico. As mudanças hormonais e cirúrgicas seriam mais uma confirmação do que uma transformação.

Transexualidade é uma aproximação moderna para uma condição tão antiga e generalizada quanto a humanidade em si. Citando Hillman, Pollack (1995) diz que “quando a imagem muda, o corpo muda”. A pessoa transexual mudaria o corpo para preencher uma imagem interna do Self. Nossa cultura, no entanto, crê em causas, em visões únicas de normalidade. Transexuais, como qualquer pessoa, tendem a acreditar nessa ideologia. Podem se preocupar por anos pelo que causou seu problema, e gastar mais anos na esperança de que um psiquiatra pode consertá-la.

A saída disso começa com o se dar conta de que ninguém pode os curar de serem eles mesmos. Mas isso é um senso comum; para fazê-lo realmente eles podem ter de descobrir e abraçar a deusa dentro de todo desejo poderoso de transexualidade. Significativamente, mais e mais transexuais começam a descrever suas experiências como “religiosa”. Davina Gabriel (ativista dos direitos transexuais) escreve que ninguém pode de fato alcançar a transexualidade sem trazer algumas ideias de “transcendência” (Pollack, 1995).

Pollack (1995) traz diversas imagens mitológicas ligadas à remoção do órgão sexual masculino. As divindades e heróis da mudança de gênero ou cross-dressing aparecem repetidamente nos mitos gregos. Às vezes são figuras da comédia, como quando a mãe de Aquiles o veste como mulher para o proteger de ir à guerra, ou quando Héracles precisa usar roupas de mulher como uma humilhação.

Talvez a mais significativa deidade de gênero cruzado na mitologia grega seja Dioniso. Chamado de “o feminino” (the womanly one), ou “o híbrido”, Dioniso foi criado como menina. Às vezes seus seguidores o incorporam como uma vara decorada com um vestido e uma barba. Adoradoras deste deus vestiam-se como homens, com grandes falos. Dioniso pode levar ao reino de Afrodite, nos lembrando que o “êxtase” nos leva fora para fora de nós mesmos, mas não para fora de nossos corpos. A transexualidade é um movimento de paixão e êxtase; corpo é um veículo em vez de seu destino (Pollack, 1995).

De acordo com Pollack (1995), uma sociedade baseada no monoteísmo supõe que pessoas são uma coisa apenas, e que esse Self monolítico nunca pode mudar. Portanto, alguém nascido com um pênis é visto como homem, desejará mulheres quando crescer, e exibirá comportamento masculino. Nossa cultura atribui toda modificação deste padrão à doença, educação distorcida ou dano genético. Contudo, homens e mulheres transexuais demonstram a interdependência de quatro fatores separados: sexo anatômico, identidade de gênero, preferência sexual e papel de comportamento. Um grande número de mulheres transexuais (de um terço a metade) são lésbicas, porcentagem similar de homens transexuais são homossexuais.

A teoria de Jung pode ser facilmente criticada pela ordem linear, identidades fixas, arquétipos herdados, relação direta com o biológico e o anatomicamente sexual etc. Entretanto, sua teoria permite que ambos os gêneros residam num indivíduo, mas coloca a emergência lenta e apropriada sexualmente do contrasexual a partir do inconsciente. Há um Jung, espécie de precoce teórico queer em seu fascínio pelo terceiro arquetípico da função transcendente, e do reino psicoide do corpo sutil. Jung acena para o corpo sutil do gênero quando fala do corpo como uma representação da materialidade física da psique. Este é o corpo sutil do gênero e da sexualidade residindo num reino intermediário entre mente e corpo, e se movendo a um processo emergente ao invés de fixado no fundamentalismo biológico.

Masculinidade e feminilidade mitologizados e ritualizados variam de cultura para cultura, e dos tempos antigos para o presente. Todos esses mitos e ritos procuraram expressar algo elementar em nosso entendimento de nós mesmos como seres conscientes e o processo interno que desabrocha na emergência da alma. Atribuir papeis no mito e no ritual de acordo com a anatomia sexual é algo universal.

Apesar do alargamento do espectro de identidades e possibilidades de vivência das potencialidades masculinas e femininas, independentes do sexo biologicamente concedido pela natureza, observa-se na atualidade diversos movimentos conservadores, frequentemente agressivos nas palavras ou mesmo em atos. A multiplicidade real presente no mundo atual revela paralelamente uma sombra com características do estático, rígido, fechado. O apelo para (inconsistentes) argumentos calcados no natural e na literalidade religiosa de tom conservador parece ganhar força nos últimos anos.

A respeito do fenômeno da transexualidade, poderíamos considerá-lo como uma confluência patológica entre persona e corpo, uma falha da imaginação e uma inabilidade de permanecer no simbólico? Às vezes este parece ser o caso. Mas talvez o corpo seja um aspecto da persona numa cultura onde não há uma categoria para ser um homem corporalmente feminino, ou uma mulher corporalmente masculina, ou mesmo alguma outra coisa. A pessoa pode estar lidando com uma questão com a qual a humanidade não está totalmente preparada para lidar na atualidade, como se fosse um problema futuro da humanidade que a “forçou” a lidar com o mesmo neste momento. Os transgêneros seriam limitados pela imaginação coletiva e eles sofrem psicologicamente como consequência de tal limitação social?

Os transgêneros parecem sofrer preconceito, ao menos em parte, porque ainda não há espaço psíquico coletivo para existir da mesma forma que não existia espaço para gays e lésbicas até recentemente (em termos históricos). Além disso, podemos pensar também que a força contida na interferência sobre a matéria não é necessariamente o literal – a depender de como a psique se relaciona com o ego nesta busca. No contexto da alquimia tal como apontado por Jung, temos a ideia de redenção da matéria, libertar o espírito cativo na matéria através das operações.

Compreender o transgênero e suas manifestações começa com certo desconhecimento e nos desafia a mover para além das limitações de nossas próprias imaginações, que podem tender a pressupor e preconceber a gama de formas simbólicas e físicas nas quais a individuação se dá, tanto individual como coletivamente. Por conta da natureza altamente carregada do assunto, somos admoestados a ser especialmente diligentes em discernir o humano da sombra na expressão simbólica.

O mais importante para a individuação não parece ser a forma como os símbolos são desempenhados – ainda que talvez seja para as mulheres, os transgêneros e os homossexuais na história recente, dado que são vítimas de preconceito. O que importa para o crescimento da consciência humana é que estejamos cientes da natureza corporal fluida de nosso gênero e sexualidade. Precisamos diferenciar as experiências pessoais do indivíduo com seus gênero e sexualidade de uma necessidade da cultura de encontrar expressão simbólica e contenção de tais aspectos poderosos da experiência humana. Assim como a alma não está em nós, nós estamos na alma; o gênero não está em nós, nós estamos no gênero. Nós estamos provendo gênero com sentido.

Referências:

MARSMAN, M. A. Transgenderism and transformation: an attempt at a Jungian understanding. Journal of Analytical Psychology (2017), v. 62, p.  678-687.

POLLACK, R. Aphrodite – transsexual goddess of passion. Spring Journal (1995), v. 57, p.  1-16.

Dr. Guilherme Scandiucci – Professor do Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa – IJEP.